Nós (1924) de Evgueni Zamiatine

by - março 11, 2018

Nós Evgueni Zamiatine
★★☆☆☆

Sinopse:
Neste romance, escrito em 1920, Zamiatine descreve, mais do que um mundo futuro, as relações humanas nesse mundo, que é eficazmente produtivista, limpo, desprovido de emoção.
As figuras humanas visíveis são apenas as dos adultos; os velhos e as crianças não estão presentes na narrativa. Os homens e as mulheres são aparentemente iguais, a começar pelo vestuário, funcional e simples (os unifs); todos têm números, e não nomes.
O meio circundante corresponde necessariamente a este tipo humano: visto a individualidade não existir, os apartamentos são transparentes. Só nas relações sexuais, superiormente organizadas, obedecendo sempre a um dia e a uma hora pré-determinados, surge um vislumbre de privacidade: fecham-se as persianas do quarto.
Trata-se, enfim, de uma ficção sobre o triunfo da racionalidade num sistema social em que cada pessoa se dissipa numa ideia de comunidade.



Opinião [Contém spoilers]:
Nunca tinha ouvido falar do livro, nem tão pouco do autor, Ievgeni Zamiatine mas, o facto se ser considerado como "a obra que inspirou 1984 de George Orwell" suscitou-me a curiosidade mas, não me convenceu.


É verdade que o cenário é distópico:
Uma guerra que durou 200 anos e dizimou 99.8% da população.
Uma cidade de vidro.
Um Muro Verde que separa "a cidade imunizada contra o mundo inferior" e mantém afastados os "animais ferozes de dentuça amarela arreganhada".
O indivíduo perdeu o direito à individualidade, sendo agora parte de um todo, que se move e se comporta "com a precisão de uma engrenagem de seis rodas, no mesmo minuto e no mesmo segundo", como se fosse "um só número unido num só corpo com muitos milhões de mãos".
As emoções, a fantasia e a alma são uma doença.
A bebida é proibida, assim como o "rolo fino de papel do qual subia o fumo de uma substância combustível que os antigos usavam".
Toda a vida, inclusive os tempos livres e a vida sexual, é regulada pelas Tábuas dos Mandamentos Horários e assim, "duas vezes por dia, às horas ordenadas pelas Tábuas (das 16:00 às 17:00 e das 21:00 às 22:00), o nosso poderoso organismo unipessoal divide-se em em células separadas".

A não-liberdade é sinónimo de felicidade.

É inegável a semelhança com o 1984 mas, alguma coisa não resultou muito bem. Sim, eu sei há defensores acérrimos do Nós, para quem esta é a melhor obra prima de todos os tempos mas, cada um tem direito à sua opinião e para mim este livro fica muito aquém do 1984.

Vamos por partes.

Nós é narrado por D-503, personagem central do livro e construtor do Integral, uma nave que permitirá a esta sociedade matematicamente perfeita encontrar civilizações alienígenas "que ainda se encontrem em estado selvagem de liberdade" e levar até elas a lógica e a ditadura benigna do Benfeitor. 

A ideia inicial, tal como nos é apresentada por D-503, é escrever um registo -ou um louvor, se preferirmos - sobre as maravilhas desta sociedade matematicamente perfeita, e incluí-la na expedição espacial, mas a mim pareceu-me que nunca houve realmente um registo sobre o funcionamento da sociedade - exceptuando um ou outro capítulo - mas sim, um sem número de considerações pessoais do narrador sobre a sua própria vida. Por outro lado, achei estranho que, sendo o álcool e o tabaco substâncias proibidas, D-503 tivesse tantas vezes uma tremenda dificuldade em articular frases ou transmitir uma ideia concreta... era como se ... ficamos sem saber o que ... talvez o que ele quisesse fosse ... (perceberam a ideia, certo?). Em determinados momentos as coisas simplesmente não faziam sentido.


Vamos à parte das personagens.


Nós Evgueni Zamiatine
D-503. Transformations
https://www.behance.net

D-503
A personagem central. 
O narrador. 
O matemático responsável pela construção do Integral.
Um tipo bipolar, com traços narcisistas e arrogante.
Um imbecil. Sim, lamento, mas é um imbecil.
Gosto de livros em que consiga sentir algum tipo de empatia com, pelo menos, uma das personagens e isso não aconteceu.
Nunca se chega a perceber exactamente o que o motiva nem de que forma ele encara este Deus que é o Estado Único. Aliás, pessoalmente fiquei com a ideia que ele não estava revoltado com coisa nenhuma ... Estava era de tal forma obcecado com a selvagem e dissidente E-330 que teria feito tudo, incluindo, trair os seus próprios valores se isso significasse conseguir envolver-se com ela. 
As descrições que faz dos outros são sempre pejadas de uma sobranceria menosprezadora: é o "o R- dos perdigotos", a U- que "todas as vezes que olho para aquelas bochechas pendentes, que a tornam parecida com um peixe, sinto-me maldisposto", e de facto comporta-se sem o mínimo respeito pelos que o rodeiam. Depois, quando a questão envolve E-330, fica completamente subjugado. 
Volto a dizer que, se não está sob o efeito de drogas, devia procurar ajuda.
Se considerarmos que o livro é uma espécie de diário em que ele é a personagem central ... bom, a determinado ponto já só apetece fazer como o rei Juan Carlos e gritar ¿Por qué no te callas?
Mas por outro lado, também pode ter sido intenção do autor criar precisamente este ódio de estimação pela personagem principal...


Nós Evgueni Zamiatine
E-330
https://www.behance.net
E-330.
A selvagem.
A dissidente.
A manipuladora.
Mais uma que não se chega a perceber exactamente o que quer fazer.
A sério... a grande ideia é tomar de assalto o Integral e partir para o desconhecido? É que estamos a falar de uma nave espacial que precisa de combustível para se deslocar ... E depois ? Quando o combustível acabar ficam a flutuar no espaço até acabar a comida e o oxigénio e morrem todos em agonia?
E depois aquelas cenas à femme fatale com os vestidos de seda amarela, a beber uma amêndoa amarga e a fumar também não me parece que tenham resultado muito bem. 



Nós Evgueni Zamiatine


O-90.
Submissa.
Sem personalidade.
Para quem o objectivo de vida é ter um filho de D-503, mesmo sabendo que será morta logo que a criança nasça.
Quase que podia gostar dela se ... tivesse algum traço de personalidade para além da total ausência de traços.


Claro que podemos entrar aqui em grande considerações filosóficas sobre o facto de a E-303 representar a antítese do D-503, no sentido que um simboliza a existência geométrica perfeita e o outro a existência selvática e apaixonada, ordem versus caos, razão versus paixão e por aí fora ... A questão é que, não obstante aquilo que simbolizam, não se chega a perceber o que os motiva para além de um desejo de satisfazer os seus próprios caprichos (para um, possuir a E-330, para outro, acabar à deriva no espaço numa nave espacial... yey!).

Ainda assim, a principal falha que encontro, é que há uma série de conceitos com imenso potencial que nunca chegam a ser verdadeiramente explorados: a Casa da Antiguidade, o Posto dos Guardas, a Torre Acumuladora ... até o Benfeitor tem uma passagem bastante breve pelo livro e, um momento que a mim me pareceu que seria de grande tensão (o confronto entre D-503 e o Benfeitor) passa sem grandes considerações.

Mas nem tudo é mau.
Gostei do conceito de existir uma cidade de vidro em que tudo é regulado pelas Tábuas dos Mandamentos Horários.
Gostei do conceito dos cupões cor de rosa.
Gostei do conceito de existir um Muro Verde que separa a cidade matematicamente perfeita da selva desconhecida (embora ache que podia ter sido muito mais explorado).

Ainda assim, apesar de ser notório que a acção decorre numa cidade sujeita a um regime totalitário, onde o Estado prevalece sobre o indivíduo e em que tudo é permitido em nome da felicidade, não se sente aquele ambiente opressivo e escuro que é palpável no 1984.

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