O Ano do Dilúvio (2009) de Margaret Atwood

by - outubro 19, 2018

★★★☆☆
Sinopse: 
O sol já brilha no céu, dando ao ao cinzento do mar o seu tom avermelhado. Os abutres secam as asas ao vento. Cheira a queimado. O dilúvio seco, uma praga criada em laboratório pelo homem, exterminou a humanidade. Mas duas mulheres sobreviveram: Ren, uma dançarina de varão, e Toby, que do alto do seu jardim no terraço observa e escuta. Está aí mais alguém ?


Opinião: 
Sabem aquela sensação quando lêem imensas críticas positivas acerca de um livro e depois pegam nele e não acham nada de extraordinário ?

Pois.

Definitivamente deve ter havido alguma coisa que me passou totalmente ao lado n'O Ano do Dilúvio porque continuo sem perceber o porquê de tantos leitores lhe terem atribuído cinco estrelas. O que vale é que também há uns quantos que não gostaram, pelo que ninguém me pode acusar de ser a ovelha ranhosa.

O meu primeiro contacto com a Margaret Atwood foi A História de Uma Serva, que adorei. 
Depois, O Coração é o Último a Morrer, que achei igualmente genial; com mais elementos cómicos, é certo, mas ainda assim com uma forte mensagem.

Portanto, Margaret Atwood seria, definitivamente, uma excelente aposta! 
E como sucede sempre que encontro um escritor que me enche as medidas, o habitual é entrar num frenesim e ler tudo aquilo a que consigo deitar a mão. 

O passo lógico seguinte seria O Ano do Dilúvio ou Ónix e Crex mas, como ambos estão esgotados nas livrarias, tive de ficar com o que consegui encontrar no olx.

Lá meti o livro na mochila para o levar para as férias mas, apesar de ter tanto tempo livre entre as mãos, a leitura avançou a passo de caracol. Sobretudo comparativamente com As Filhas de Eva, que me durou dois dias.

Primeiro, porque estava a ter alguma dificuldade em entender-me com os saltos temporais, dado que a narrativa vai alternando entre o ano vinte e cinco, ano em que ocorreu o dilúvio, e os anos que o antecedem.

Depois, porque não estava a conseguir estabelecer a ligação entre as personagens principais, Ren e Toby, cujas histórias se cruzam em diversas partes da narrativa.

E por último, porque não havia forma de interiorizar a estrutura do livro e a forma como estava organizado, dado que intercala discursos proferidos pelo Adão Um - o líder religioso de uma seita chamada Os Jardineiros - com os saltos no tempo de Ren e Toby.

Claro que, considerando que estava de férias, talvez tenha apanhado demasiado sol na moleirinha e isso me estivesse a toldar o raciocínio.


Mas, vamos lá então ao livro.

No meu imaginário, um dilúvio envolve água.
Bastante.
Mas, água é coisa que não há neste livro.
Sabem no entanto o que há e que também existe num dilúvio que se preze ?
Muitos mortos.

Recordam-se daquele clássico em que um tipo decide que a humanidade se tornou demasiado pecaminosa e decide enviar um dilúvio para erradicar praticamente toda a espécie humana e outras espécies que não tinham nada a ver com aquilo ? Bom, neste livro a ideia é muito semelhante, principalmente porque também vamos assistir a uma espécie de reboot.

A realidade para a qual Margaret Atwood nos transporta neste livro é a de um mundo controlado por corporações, como a SabiaSaúde e a CorpoSegur, onde aqueles que delas fazem parte podem levar vidas opulentas em condomínios de luxo, enquanto todos os outros são escorraçados para viver nas plebarias, como Willow Acres, apelidada pelos moradores como Lagoa de Esgoto « porque imensa merda acabava por ir lá parar ».

Contudo, apesar desta discrepâncias entre aquilo a que uns e outros tinham acesso, a realidade é que, na prática, todos eles acabam por estar reféns dos caprichos das corporações, para quem tudo é uma questão de custo-benefício e, se chegarem à conclusão que lhes sai mais barato sujeitarem um determinado indivíduo a experiências não autorizadas, tanto lhes faz que seja funcionário ou não. A única diferença é que se for, a investigação dirá que morreu num trágico acidente e, se não for, provavelmente acaba feito em carne picada e transformado em hamburguer.

Como se chegou a este cenário onde as corporações ocupam um papel dominante, é algo que não é muito aprofundado no livro. Quando começamos a ler, já tudo parece mergulhado no caos mas, à semelhança do que aconteceu com A História de Uma Serva e o Coração é o Último a Morrer, percebemos que quando surgiram, foram vistas como sendo algo positivo.

« Tinha uma imagem a manter entre aqueles cidadãos que ainda defendiam os velhos ideais da boca para fora: defensora da paz, garante da segurança pública, mantendo as ruas ordeiras. Já na altura era uma piada, mas a maioria das pessoas acreditava que a CorpoSegur era melhor do que a anarquia total.»
O Ano do Dilúvio (p. 46)

Mas o poder corrompe.
E rapidamente aquilo que inicialmente se apresentou como uma alternativa à anarquia, se torna parte integrante das engrenagens da corrupção.

« As plebemáfias pagavam aos SegurHomens para fazerem vista grossa. Em troca, a CorpoSegur deixava as plebemáfias encarregarem-se dos assassínios e raptos menores, das operações de cultivo de skunk, dos laboratórios de crack e da venda de rua a retalho, e das lojas de pranchada que eram a sua especialidade. Também se encarregavam da eliminação de cadáveres, colheita de órgãos para transplantes, seguidamente de passar as carcaças estripadas pelos picadores da HambúrgueresSecretos.»
O Ano do Dilúvio (p.46)

Perante este cenário de anarquia mal disfarçada, começam a surgir várias seitas, entre as quais a dos Jardineiros, da qual fazem parte Ren e Toby, as personagens principais deste livro.

« Os Jardineiros estavam convictos de um desastre iminente (...). Uma gigantesca mortandade da raça humana estava iminente, graças à superpopulação e perversidade, mas os Jardineiros isentavam-se: faziam tenção de flutuar no Dilúvio Seco (...). »
O Ano do Dilúvio (p.61)

Diria que os Jardineiros são, essencialmente, uma comunidade hippie, vegana e ambientalista. Não comem carne nem nenhum dos seus derivados, cultivam o seu próprio alimento e, as poucas coisas que possuem são feitas a partir de materiais existentes ou recolhidos por eles na rua. Bem vistas as coisas, são os únicos que não estão corrompidos pelos vícios consumistas da sociedade e, consequentemente, aqueles que mais hipótese têm de sobreviver ao desastre que aí vem.


Desastre esse que é, nada mais, nada menos, do que o Dilúvio que serve de título ao livro mas, neste caso, um dilúvio seco.

Inicialmente julgou-se tratar-se de uma « peste eruptiva » que se espalhava rapidamente. Não, nem era a espalhar-se; rebentava em cidades muito distantes ao mesmo tempo, o que não era o padrão normal.

« Os especialistas não sabiam o que era aquele supervírus, mas era com certeza uma pandemia e uma data de pessoas estava a morrer rapidamente - assim tipo a derreter-se. Logo que eles disseram: « Não há motivo para pânicos » naquele tom calmo e arrepiante e com aqueles sorrisos colados, deu para ver que aquilo era mesmo grave.»
O Ano do Dilúvio (p. 315)

Tal como os Jardineiros previram, este dilúvio seco destinava-se a erradicar o Mundo Extrafernal, e não infectava outra espécie que não a nossa, deixando portanto todas as outras criaturas incólumes. Dito desta forma, até parece que o planeta se decidiu regenerar e tentar começar um novo Éden mas, a origem deste dilúvio está longe de ter causas naturais, o que nos remete para um aspecto muito interessante do livro: a semelhança com a realidade.

Há quem diga que o mais assustador na ficção de Margaret Atwood é o quão próxima da realidade parece estar, e eu não podia estar mais de acordo. É certo que neste livro há determinados detalhes que - ainda - fazem parte do universo da ficção científica mas, há outros aspectos que sentimos estarem a um passo de distância. E isso, caros leitores, esbate bastante aquela linha que separa a realidade da fantasia e é, na minha opinião, um dos aspectos mais positivos do livro.

Quanto às personagens, Toby e Ren: o que têm em comum uma prostituta que está fechada numa sala de quarentena e uma quarentona que vive num antigo spa, agora rodeado de ervas altas no meio das quais jazem os corpos das vítimas de epidemia ?

Referi no início que tinha tido alguma dificuldade em estabelecer uma ligação entre elas mas, agora que passei novamente os olhos pelo livro e pelos apontamentos, as coisas fazem mais sentido e reconheço até que o facto de haver uma diferença de idades entre elas torna tudo mais interessante visto que nos permite ter uma perspectiva diferente dos mesmos acontecimentos, e acompanhar percursos distintos que se cruzam aqui e ali, a partir do momento em que ambas passam a fazer parte da seita dos Jardineiros.

O mesmo relativamente aos saltos temporais.
Sim, inicialmente tive alguma dificuldade em interiorizar mas agora reconheço que a técnica é uma boa forma de conduzir o leitor ao sabor dos acontecimentos. Isto porque, embora o início de cada capítulo comece com o ano do dilúvio, deixando-nos saber em que situação a personagem se encontra naquele momento, ao longo dele vamos sabendo mais acerca de Toby ou Ren e descobrindo como é que chegaram à sua situação actual.

Assim sendo, embora O Ano do Dilúvio não tenha sido uma das minhas leituras favoritas, é um daqueles livros que provavelmente irei reler daqui a uns tempos. A quem ainda não o tenha lido, sugiro que o faça mas, com calma e atenção porque tem realmente bastantes detalhes que é necessário interligar para se tirar algum partido da história.


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2 comments

  1. Olá! Segui o teu conselho lá no Instagram e vim até aqui à procura de uma luz sobre este livro. Gostei bastante da tua opinião e, pelo que li até agora, concordo.
    Não posso dizer que não estou a apreciar esta leitura, mas também não posso dizer que estou a desfrutar particularmente dela. Garantidamente, não foi uma boa escolha para conhecer a escrita de Margaret Atwood, pensei em começar pela "História de uma Serva" ou por "Alias Grace", mas o único livro disponível na biblioteca era este, então não tive hipótese de escolha foi o livro que me escolheu não o contrário...
    Acho o tema pertinente e tenho a certeza que quando acabar o livro posso até dizer que gostei, mas para já vou saboreando-o com calma, tal como aconselhas :)
    Mundo da Fantasia

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  2. Olá Sónia, Obrigado pelo teu comentário :) Realmente «O Ano do Dilúvio» também não foi livro que me tivesse agradado particularmente. Demorei imenso tempo a entrar na história mas, já percebi que isso me acontece com alguma frequência nos livros da Margaret Atwood: durante a leitura não me agradam mas depois, quando começo a escrever a review, parece que começam a surgir uma série de ideias e significados que me passaram ao lado durante a leitura (ou se calhar não passaram ... estavam lá mas num plano menos óbvio) e portanto, acabo sempre a pensar "Esta mulher é um génio!"

    Aproveita a leitura e quando terminares, se quiseres, adorava saber o que achaste! :)

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