O Silêncio das Filhas (2017) de Jennie Melamed

by - outubro 04, 2019

Gather the Daughters
★★★☆☆
Sinopse:
Vanessa, Amanda, Caitlin e Janey vivem numa ilha. Não sabem em que região do mundo nem em que ano estão, mas aprenderam que a vida lá é uma bênção comparada à das temidas Terras Devastadas - onde reina a doença e a podridão. Aquele era um lugar tão negro, que os seus dez antepassados decidiram debandar e fundar uma nova sociedade com novas regras.

Neste mundo, as mulheres e as suas filhas levam uma vida austera e controlada pelos patriarcas. O destino não lhes pertence. Apenas no verão, e enquanto crianças, é que elas são livres. Assim que a puberdade desperta, tornam-se esposas em treino nas mãos dos pais, dos maridos e dos seus governantes. Logo que deixam de ser úteis, são imediatamente descartadas, segundo os rituais da ilha,

Todas as mulheres cumprem as regras. Até que um dia, a pequena Caitlin assiste a algo tão chocante que não consegue guardar silêncio sobre o que sente. Ela conta às outras. A palavra espalha-se. A redoma quebra-se. E então, uma pergunta paira-lhes na cabeça: Será o destino delas assim tão inevitável? [Fonte: MELAMED, Jennie. O Silêncio das Filhas. Amadora: Topseller (2017)]

Opinião:
Tinha este livro pendente de leitura desde que o comprei na Feira do Livro de Lisboa (2019). Entretanto, fui lendo outras coisas até que, em Setembro - e depois de uma mini-maratona de Stephen King - decidi regressar às distopias e O Silêncio das Filhas pareceu-me uma boa opção.

Infelizmente, o livro ficou bastante aquém do esperado, principalmente porque a história não conduz a coisa nenhuma, as personagens parecem fabricadas numa linha de montagem e as referências exaustivas aos costumes mais "invulgares" desta sociedade parecem servir o único propósito de chocar o leitor. Não me interpretem mal. Eu gosto de livros que choquem. Que provoquem algum desconforto. Um dos meus favoritos de 2019, Anticorpos, fala de mulheres que abortam em grupo para depois matarem as crianças e fazer encenações com os cadáveres. Mas, ainda assim, e por muitas susceptibilidades que isto possa ferir, não era despropositado naquele contexto.

Se ainda não leram O Silêncio das Filhas, tenho de vos alertar que esta review contem alguns spoilers. No entanto, seria impossível falar acerca daquilo que gostei e não gostei no livro sem revelar absolutamente nada da história em si. Assim sendo, considerem-se avisados. 

Gather the Daughters Gather the Daughters

Publicado pela primeira vez em 2017, O Silêncio das Filhas (título original: "Gather the Daughters") passa-se numa ilha onde uma sociedade agrária e patriarcal vive completamente isolada do resto do mundo. Aquilo que lhes é dito, e transmitido de geração em geração, é que o resto do mundo, agora chamado de Terras Devastadas, foi alvo de uma grande calamidade da qual os Antepassados conseguiram escapar, tendo depois fundado aquela comunidade, o único local onde se pode viver em paz enquanto tudo o resto continua a arder.

Gostei da ideia e devo dizer que passei o livro todo à espera de ter mais informação. Quando chega um novo casal à comunidade pensei que ia, finalmente, saber um pouco mais acerca das Terras Devastadas. 

Será que o resto do mundo está mesmo a arder ou em guerra?
Que grande calamidade foi essa de que falam? Guerra? Desastre nuclear?
Houve realmente alguma calamidade ou a ilha é alguma espécie de experiência?

A verdade é que nunca chegamos a saber como é que esta sociedade emergiu, nem com que propósito. Da mesma forma que nunca chegamos a saber realmente o que é que se passa para lá da ilha. Há umas pistas, aqui e ali, que dão a entender que não há incêndio nenhum. A juntar a isso, temos o facto dos andarilhos - os dez descendentes dos Antepassados e os únicos com autorização para sair da ilha - trazerem coisas das Terras Devastadas, nomeadamente papel, redes, arroz e medicamentos. Mas, isso por si não é propriamente conclusivo uma vez que, pode ser como eles dizem e, tudo aquilo que trazem serem coisas que os mortos deixaram para trás.

Para mim, este foi um dos pontos negativos. Claro que gosto de alguma aura de suspense, mas teria sido muito mais interessante que toda esta história da fundação de uma nova sociedade fosse acompanhada de algum enquadramento. Da forma que está, aquilo com que ficamos é uma ideia boa mas mal concretizada.

Gather the DaughtersGather the Daughters

Depois temos a questão dos costumes desta sociedade que são, no mínimo, "invulgares" e que, pelas reviews que tive oportunidade de ler, escandalizaram muita gente e fizeram com que outras tantas se sentissem ofendidas.

A comunidade que tem o privilégio de morar na ilha, vive numa sociedade onde o nascimento de um rapaz é celebrado e o de uma rapariga é lamentado. As mulheres são subservientes, os homens são quem governa, o incesto entre pai e filha é prática comum e, quando se atinge uma determinada idade é suposto beber-se algo que os mata para assim dar lugar à nova geração.

Isto quase que parece uma check-list de "como ofender pessoas em 3...2...1"


Mas, como já devem ter imaginado, obviamente que a parte do incesto é o que suscitou mais críticas. Uns porque se sentiram atacados, outros porque se sentiram ofendidos, outros porque gostavam que houvessem cenas mais explícitas, outros porque acharam que eram demasiado explícitas.

O que se passa nesta sociedade é que as mulheres pertencem aos seus maridos e as filhas pertencem aos seus pais. Assim, é prática comum que os pais mantenham relações sexuais com as filhas desde a mais tenra idade e até ao momento em que estas tenham a primeira menstruação. Quando isso acontece, elas passam a ser consideradas mulheres, e são emparelhadas com um homem durante um processo ao qual chamam o verão de fruição. Basicamente, quando chega o verão, juntam todas as raparigas que tenham tido a primeira menstruação com todos os homens solteiros e depois andam de casa em casa para se conhecerem melhor e escolherem um parceiro, o que basicamente se traduz numa espécie de orgia itinerante.

Relativamente a isto, o que tenho a dizer é que nada faz sentido. Tal como acontece com a falta de enquadramento relativamente à origem da ilha, também aqui há muita coisa que parece existir com o único propósito de escandalizar, nomeadamente o facto dos pais terem relações sexuais com as filhas. Atenção que não estamos a falar de casos isolados mas sim, de uma prática comum a toda a comunidade da ilha. 

Mas porquê ?!

Não faço a mínima ideia e o livro também não explica. Avanço algumas sugestões:
☑ É assim, porque sim. 
 Porque "sabe Deus".
 Porque "é assim a vidinha".
 Porque um livro que fale de incesto vai dar muito que falar.
É só escolher.

Mas esperem que isto ainda fica melhor!

A questão do incesto não está propriamente escarrapachada no livro. Ou seja, não temos nenhuma cena altamente gráfica a descrever o pai a abusar da filha. O que vamos tendo são pequenas pistas aqui e ali, aqui e ali, aqui e ali ...  e basicamente chega a um ponto em que uma pessoa pensa « OK JÁ PERCEBI A IDEIA!!! Podemos avançar por favor? » 

Caramba! 

Mais valia pôr logo uma cena escandalosa e arrumava-se o assunto. Parece que a autora decidiu estar constantemente a relembrar-nos do mesmo, como quem diz: 

« Pssst Pssst ... Já reparaste que este livro fala de incesto? 
Uhhhh ... Chocante não é? Escandaloso!»

Mas, ao investigar um pouco acerca da autora, descobri que é uma enfermeira psiquiátrica que se dedica a investigar os diferentes aspetos do abuso de crianças e num artigo intitulado Exploring a Cultish Culture ela fala-nos um pouco acerca da ideia por detrás deste livro e da forma como explora duas questões bastante interessantes: Quais seriam as consequências de crescer numa sociedade onde os abusos fossem a norma, e de que forma os abusos seriam tolerados caso os grupos de pares também os tolerassem ?

Ora agora pensem comigo: aquela comunidade vive isolada do resto do mundo, certo? Todas as raparigas vivem uma relação incestuosa com o respetivo pai, certo? Então porque raio é que elas haviam de achar aquilo estranho?


Não me interpretem mal: não estou para aqui a defender relações incestuosas não consentidas, sobretudo quando uma das partes não tem sequer o direito de dizer uma palavra acerca disso. Sabemos que em muitas das sociedades atuais (não vou ser hipócrita e dizer em todas porque, bem sabemos que há muita coisa estranha por esse mundo fora) tanto o incesto como a pedofilia são considerados desvios à norma. As relações sexuais com crianças são consideradas uma forma de abuso e, muitas vezes, a própria vítima nem sequer percebe de imediato que está a ser alvo de abuso porque confia no adulto que lhe diz que tudo aquilo não passa de "uma brincadeira" ou de "um jogo engraçado e secreto" e isso acaba por torná-la num alvo fácil. Muitos destes abusos só vêm ao de cima quando a criança começa a perceber que o que se está a passar não é normal ou quando os pais percebem que algo não está bem.

Reparem: quando a criança começa a perceber que aquilo não é normal porque tem outras referências e modelos. 

Em O Silêncio das Filhas, o abuso é a norma. Ou seja, os homens que são agora adultos e que têm relações sexuais com as suas filhas, foram educados nesses moldes. As mães, foram também elas crianças e alvo da mesma cartilha. Não conhecem nenhuma outra realidade. E aqui eu acabo por ter alguma dificuldade em perceber qual era a ideia da autora ... Principalmente quando uma das moças se revolta perante a ideia da filha por nascer ter de passar por tudo isso, conforme ela passou.

Passa-me completamente ao lado a mensagem que a autora pretendia passar com isto e, sinceramente, custa-me a atender o sentimento de revolta numa sociedade isolada do mundo, que não conhece outra realidade para além daquela. Se tiverem alguma ideia, sou toda ouvidos!

Claro que o facto de haver uma voz que se opõe àquilo, leva logo a que outras tantas se juntem e passei grande parte do livro à espera que uma rebelião se insurgisse mas... nada. Tudo apontava nesse sentido: as reuniões secretas, a fuga de casa... mas a verdade é que nunca se percebe realmente qual é o objetivo de tudo aquilo e o facto da rebelião se traduzir em fugir de casa e ficar a dormir na praia acaba em fazer com que aquilo pareça mais uma brincadeira do que qualquer outra coisa.  

Gather the Daughters

Para terminar: as personagens são péssimas. Isto ganha algum destaque visto que toda a história é narrada no ponto de vista de cada uma delas: Vanessa, filha de um andarilho; Caitlin, cujo pai é alcoólico e que não se faz rogado em exercer violência física; Amanda, que está grávida do primeiro filho; e Janey, a mais velha de todos que come o mínimo essencial à sobrevivência de modo a evitar o aparecimento da menstruação. Contudo, apesar de todas elas terem estas caraterísticas que as diferenciam, a verdade é que só para aí a meio do livro é que comecei a associar a informação. Embora às vezes eu possa ser de compreensão lenta, neste caso o desenvolvimento das personagens é que o foi, e durante muitos capítulos parecem todas iguais. Apenas à medida que amos avançando na leitura é que vamos apanhando mais um e outro detalhe e assim começamos a fazer a distinção.

Concluindo, O Silêncio das Filhas é um livro que nos vai mantendo ora entretidos e curiosos - enquanto tentamos perceber no que é que aquela rebelião vai dar - , ora confusos - quando percebemos que a rebelião é uma espécie de brincadeira sem um propósito definido - mas, de uma forma geral, achei que deixa muitas pontas soltas, muitas coisas por explicar e, na minha opinião, isto resulta num final atabalhoado em que não se percebe muito bem para que é que foi aquilo tudo. 


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