Cell A Chamada para a Morte (2006) de Stephen King

by - setembro 08, 2019

★★★☆☆
Sinopse:
Não é à toa que cell (telemóvel) rima com hell (inferno)...
Um de Outubro. Está uma tarde soalheira e Clayton Rydell caminha alegremente pela Boylston Street em Boston. A vida corre-lhe bem: acabou de assinar um contrato para a criação de um livro de banda desenhada. No entanto, tudo vai mudar muito rapidamente, quando uma explosão de energia transforma em máquinas assassinas todos aqueles que naquele preciso instante tinham um telemóvel encostado ao ouvido. [Fonte:wook


Opinião:
Normalmente reclamo sempre dos finais dos livros de Stephen King.
Ora porque são apressados.
Ora porque, por muito mau que o cenário se apresente, acaba sempre tudo cheio de purpurinas cor de rosa, unicórnios e arco-íris. 

Cell foi o primeiro livro da #maratonastephenking que li e em que gostei realmente do final porque é tão ambíguo que tanto pode significar uma coisa, como o seu completo oposto. Ainda assim, não posso dizer que tenha gostado especialmente dele e a verdade é que nunca fiquei realmente absorta na história.

Estamos no dia 1 de Outubro e Clayton Ridell percorre a Boylston Street com um ar de nítida satisfação estampado na cara. Na mão direita leva o portefólio com os quadros do seu "Vagueante Misterioso", uma personagem por si criada e que acabara de lhe valer um contrato com a Dark Horse Comics. Pára junto à carrinha de gelados, onde alguns jovens clientes se amontoam para fazer o pedido e de repente...


« Nesse instante ouviu-se novo grito vindo do parque, desta vez não de origem humana, mas algo entre um ganido de surpresa e um uivo de dor. Clay virou-se e viu o cão que andara a passear com o frisbee na boca. Tinha o pelo castanho, de porte grande, talvez um labrador (...). Ajoelhado ao lado do animal estava um homem de fato e gravata que o mantinha preso pela coleira e parecia estar - « Com certeza não estou a ver bem », pensou Clay - a morder-lhe a orelha. O cão uivou de novo e tentou soltar-se. O homem do fato e gravata segurou-o firmemente e, sim, aquilo que via na sua boca era a orelha do cão, e enquanto Clay o observava, viu-o arrancá-la da cabeça do animal. » (pg.15)

Esta violência brutal, e a forma como somos atirados para o meio de tudo isto sem sequer sabemos que raio se está a passar foi, para mim, o ponto forte do livro. 

Ponho-me a pensar: o que é que a maioria de nós fazia se, de repente, se encontrasse nesta situação ? Estamos muito bem na paragem à espera do autocarro, e de repente, a pessoa que está depois de nós na fila atira-se à que está atrás e rasga-lhe a garganta com os dentes. 


Se a vítima fosse uma daquelas personagens que levam a música a tocar nos altifalantes para todos os outros passageiros ouvirem, o atacante estaria a fazer um serviço público e, portanto, provavelmente ia lá entregar-lhe uma toalhita para se limpar visto que toda a gente sabe que manchas de sangue são difíceis de sair. 

Se não fosse esse o caso, o mais certo era ficar exatamente como o Clay: incrédula e a pensar que de certeza que estava a perceber mal o que se estava a passar... Se calhar é um desses flash mobs modernos, um programa dos apanhados, um episódio do "E se fosse consigo?"

No entanto, nenhuma dessas hipóteses se vem a revelar ser a correta. 

O que acontece em Cell é aquilo a que viria a ficar conhecido como "O Impulso", e que fez com que a cidade ficasse a parecer « (...) o raio de A Noite dos Mortos Vivos »  (pg.31).  Alguma coisa, ou alguém, parece ter arranjado forma de alterar os sinais de telemóvel que afeta todos aqueles que fizerem ou receberem uma chamada. Basicamente, assim que recebem esse sinal, ou impulso, o vosso cérebro é apagado e ficam reduzidos aos instintos mais primários que, neste caso específico, se parece limitar à violência pura e dura. 

"Cell" por Tomer Hanuka

Agora pensem no seguinte: qual é a primeira coisa que se faz para se tentar descobrir o que se passa ? Precisamente: pegar no telemóvel. 

Portanto, já conseguem ter uma ideia da dimensão do problema e de como é fácil que este impulso se espalhe. Os únicos que estão a salvo são os que não usam telemóvel ou que, por algum motivo, não tinham acesso a ele no momento em que o sinal foi difundido. Todos os outros, fazem agora parte de uma massa de gente com uma mente coletiva, que vagueia pelas ruas durante o dia, e se recolhe em rebanho durante a noite.

« Faziam todos parte deles. Não havia como confundir os rostos impassíveis, o olhar perdido, as roupas sujas, manchadas de sangue e desalinhadas (nalguns casos a ausência total delas), o ocasional grito roufenho ou o gesto convulsivo. Havia o homem em cuecas de licra e pólo, que parecia estar sempre a fazer a continência; a mulher corpulenta com o lábio inferior rachado, a pender em duas tiras carnudas, revelando todos os dentes do maxilar inferior; o adolescente alto em calções de ganga que percorria a Salem Street com o que parecia ser um macaco empastado em sangue na mão; um senhor, indiano ou paquistanês (...) a torcer o maxilar de um lado para o outro. » (pg.103)

A história em si acaba por não fugir muito a todas as outras histórias que envolvem cenários apocalíticos: temos uma espécie de epidemia que se espalha a um ritmo assustador um grupo de sobreviventes que não desiste de lutar para se manter vivo. Nada de novo aqui e nada de novo durante o resto do livro.

Como referi é uma história igual a tantas outras, sendo que a única novidade que traz é o facto do impulso ser difundido através do telemóvel e deixar apenas nas pessoas « uma única linha de código que não pode ser apagada (...). A instância primária » (pg. 170), aquilo que nos permitiu passar a governar o mundo: o facto de sermos « os filhos da puta mais loucos e sanguinários da selva » (pg. 170). Portanto, essencialmente, é uma história de zombies mas, sem zombies e, para ser franca, quanto mais avançava no livro, mais ia perdendo o interesse.

"Cell" (2016) | Realizado por Tod Williams

A história arrancou bem e o facto de sermos catapultados para o meio do caos contribui bastante para nos deixar desnorteados, o que acho que é precisamente a intenção do autor. Nunca sabemos mais do que aquilo que as personagens sabem e portanto, acabamos por ir acompanhando a formulação de novas teorias que procuram explicar o Impulso, enquanto nós próprios acabamos por ir formulando as nossas. No entanto, no final, acabamos por ficar na mesma porque não há propriamente uma explicação para aquilo que se passou. 

As personagens, claro, estão muito bem construídas - aliás, este é capaz de ser um ponto forte transversal a todos os livros de Stephen King -, sobretudo o trio que se forma logo ao início e que iremos acompanhar praticamente até ao final do livro. Mas, se durante grande parte da história eles se apresentavam como uma força coesa, a partir de determinado ponto achei que aquilo que manteve a sua dinâmica interessante se foi perdendo, e com isso se foi perdendo também um dos fatores que mantinha as coisas interessantes.




Por tudo isto, Cell não foi propriamente um livro memorável.

A história é um tanto ou quanto recauchutada, com algumas ligeiras diferenças para dar a impressão de que traz algo de novo mas, de uma forma geral, acaba por não nos levar a lado nenhum.

Ou talvez leve, mas a um nível mais subjetivo.

Na minha opinião, Cell poderá perfeitamente funcionar como uma espécie de crítica ao mundo atual em que, como algumas pessoas já dizem em tom de brincadeira, "os miúdos já nascem com um telemóvel na mão". À semelhança dos zombies deste livro, também nós partilhamos uma mente coletiva ao estarmos constantemente ligados uns aos outros, e ao mundo. Os que não fazem parte desta rede global - os insanos que não têm facebook, instagram, ou, horror dos horrores (!), que não têm internet no telemóvel - são vistos como uma espécie à parte e são realmente segregados na medida em que lhes é vedado o acesso a determinadas coisas (pensem bem na quantidade de coisas a que uma pessoa que não tenha um smartphone não tem acesso...), ao mesmo tempo que são constantemente aliciados para se juntarem ao rebanho.

Por outro lado, no livro há um Impulso que faz uma espécie de limpeza ao nosso disco rígido, deixando apenas a instância primária que é a violência. Mais uma vez, a ficção não anda longe da realidade porque, se repararem, anda muita bazófia por essas redes sociais fora e basta ir ler os comentários de uma notícia mais polémica - essencialmente qualquer uma que envolva minorias étnicas ou refugiados - e é ver os tais « filhos da puta mais loucos e sanguinários da selva » (pg. 170) a saírem do covil onde nidificam. 

Portanto, neste aspeto, acho que Cell até acaba por ter uma mensagem interessante que nos leva a refletir no quão ligados estamos ao mundo virtual, em detrimento do mundo real e, se lermos o livro sob esse prisma, damos conta que existem muitos mais paralelismos do que aquilo que gostaríamos.  


Para quem gosta de adaptações ao cinema, tenho boas e más notícias. As boas notícias é que existe uma adaptação de Cell, realizada por Tom Williams. As más notícias são que o filme parece ser uma... bom... como dizer isto... (respira fundo)... parece ser uma merda. Pronto, já disse! Não só tem 4.3 no IMDB - vale o que vale mas, normalmente, é um barómetro mais ou menos credível - como um dos atores principais é o John Cusak. Ainda lá meteram o Samuel L. Jackson para ver se aquilo melhorava mas não me parece que tenha servido de muito. 


"Cell" (2016) | Trailer Oficial

Segue-me nas Redes Sociais!

Book Gift - www.wook.pt

Acho que poderás gostar de...

0 comments