Eu sou a Lenda (1954) de Richard Matheson
★★★★★
Sinopse:
Robert Neville é o último homem vivo na Terra... mas não está sozinho. Todos os outros homens, mulheres e crianças transformaram-se em vampiros e estão sequiosos pelo sangue de Neville.
De dia, ele é o predador, caçando os mortos vivos pelas ruínas abandonadas da civilização. De noite, Neville barrica-se em casa e reza para que chegue a manhã.
Durante quanto tempo pode um homem sobreviver num mundo de vampiros?
Opinião:
Uma epidemia que atingiu proporções globais.
Um pequeno grupo de indivíduos que é o último reduto da Humanidade.
E um não tão pequeno grupo de indivíduos infectados.
Does this sound familiar ?
Se gostam de filmes de zombies, provavelmente soa-vos bastante familiar.
Afinal de contas, este é o enredo de praticamente todos os filmes do género.
Saberão também que o Night of the Living Dead (1968), realizado por George Romero, é conhecido por ter sido o primeiro filme de zombies modernos.
E adivinhem em que livro George Romero diz, numa entrevista à CinemaBlend, ter-se inspirado para dar vida a estes mortos que não ficam mortos...
Eu Sou a Lenda.
Importa ainda não esquecer que Richard Matheson é também considerado como tendo desempenhado um papel fulcral na transição do terror gótico e lovecraftiano para o moderno horror urbano.
Por tudo isto, não é de estranhar que Eu Sou a Lenda, tenha sido já adaptado ao cinema várias vezes, embora a adaptação mais popular (e não necessariamente a melhor) seja a versão lamechas com o Will Smith no papel principal e que, na minha opinião, falha redondamente em captar a essência do livro.
A história de Eu Sou a Lenda é simples: em 1976, Robert Neville parece ser o único sobrevivente de uma pandemia, na sequência da qual perdeu a mulher a a filha. Imune ao vírus que transforma todos os infectados em vampiros, acabou por se barricar em casa, em Los Angeles. Durante o dia faz incursões à cidade, com o objectivo de localizar e destruir os vampiros que estão em repouso, assim como os humanos infectados que se encontram em estado comatoso. Durante a noite, "o tempo deles", refugia-se em casa enquanto eles o cercam.
"Estava na sala, a tentar ler. Tinha preparado um whisky com soda no pequeno bar e segurava o copo frio enquanto lia um texto sobre fisiologia. Das colunas em cima da porta do hall, saía, alta, a música de Schönberg.
Não o suficiente, pensava. Ainda os conseguia ouvir lá fora, o seu murmurar e os seus passos em volta, e os seus gritos, os seus grunhidos e as lutas entre eles próprios. De vez em quando uma pedra ou um tijolo embatia fora da casa. Por vezes, um cão ladrava.
Estavam lá todos pela mesma razão."
Eu Sou a Lenda (p.10)
Eu sou da opinião que podemos sempre abordar um livro de duas formas.
Tal e qual como o lemos e, neste caso, Eu Sou a Lenda é um livro de vampiros.
Ou overthinking acerca do que lemos e, neste caso, Eu Sou a Lenda, é mais do que um livro de vampiros.
Pondo isto de forma simples, o livro podia de facto ser só uma história de vampiros. Mas, se fosse só uma história de vampiros, provavelmente não teria um impacto que teve, nem seria considerado um dos livros do século. Pessoalmente, encaro-o como um livro sobre solidão e desespero. E, quando mais penso no livro e releio as notas que fui tomando, mais claro fica que o desespero de Robert Neville é quase palpável.
A falta de contacto humano, que no filme com o Will Smith se traduz num Robert Neville a falar com manequins estrategicamente colocados, ou a ver o Shrek vezes sem conta, é muito mais duro no livro.
"Não conseguia vencer a estranheza que a sua própria voz lhe causava. Quando um homem deixava de ouvir a sua voz durante quase um ano, esta soava-lhe como algo de muito bizarro. Um ano era tempo de mais para se viver em silêncio."
Eu Sou a Lenda (p.101)
Então, mas e o cão ? - Perguntará quem viu o filme.
Sim, é verdade que no filme o cão assume um papel bastante importante.
Sobretudo quando morre e arranca uma lágrima ou outra aos espectadores (ou espetadores, se preferirem o novo acordo ortográfico). Confesso que passei grande parte do livro a dizer que a adaptação ao cinema era uma treta porque tinham posto um cão só para causar choradinho e que para isso mais valia terem posto aquele tipo que apresenta aquele programa que dá ao fim de semana em que os convidados saem de lá todos a chorar.
Mas sim, no livro também temos um cão.
Um cão que, de alguma forma, encontrou forma de sobreviver num mundo infestado de vampiros - e não um cão que era ainda cachorro quando se deu a epidemia e que foi entregue a Robert Neville pela filha [inserir momento trágico para se verter mais uma lágrima aqui]. No livro, as páginas onde se descrevem as tentativas de Robert Neville estabelecer contacto com ele reflectem o mais profundo desespero de quem procura estabelecer algum tipo de laço, após vários anos em isolamento.
"Mas era muito difícil manter as mãos quietas. Quase que as sentia a latejar ao ritmo do forte desejo que tinha de se esticar e fazer uma festa na cabeça do cão. Tinha tantas saudades de amar alguma coisa outra vez, e aquele cão era um cão tão feio mas tão bonito ao mesmo tempo."
Eu Sou a Lenda (p.92)
A narrativa começa assim em Janeiro de 1976 e termina três anos depois. Durante esses três anos, acompanhamos o dia a dia de Rober Neville e a forma como procura sobreviver, mesmo que às vezes coloque em causa o motivo pelo qual continua a fazê-lo. Acompanhamo-lo quando entra numa espiral descendente devido à dor provocada pela morte da esposa e da filha. Estamos lá quando se entrega ao álcool para tentar anestesiar a dor que sente. Assistimos às suas tentativas de perceber o que terá provocado a pandemia e se haverá uma vacina que permita a cura.
Posto desta forma, poderá parecer um livro aborrecido, e a verdade é que o livro não prima propriamente pelas suas cenas de acção. Pelo contrário, é bastante parado. Ainda assim, achei absolutamente brilhante como é que em apenas 158 páginas, o autor consegue ter a capacidade de transportar o leitor para o lugar do Robert Neville e de nos deixar a pensar e se... ?
E se isto acontecesse ?
Não falo forçosamente de uma epidemia zombie/vampírica mas, qualquer coisa desconhecida e causadora de medo.
Como nos comportaríamos ?
Quanto tempo aguentaríamos barricados em casa ?
Será que nos barricaríamos sequer ou daríamos logo um tiro nos miolos ?
Como seria estar completamente isolado, anos a fio ?
Não é um livro de leitura "leve" se o encararmos deste ponto de vista mas, ainda assim, altamente recomendado (foi o primeiro livro de 2018 a que atribuí cinco estrelas), que vos vai remexer as entranhas e deixar-vos de humor depressivo durante umas quantas semanas.
Se quiserem pesquisar, há também bastantes artigos na net que interpretam o livro à luz do contexto histórico em que foi escrito (Guerra Fria) e tentam estabelecer um paralelismo entre o medo dos vampiros e o medo do desconhecido/comunismo. Há material que nunca mais acaba!
A única parte negativa do livro foi mesmo a péssima qualidade da edição. Consegui comprar o livro por dois euros em segunda-mão (yey!) e é aquela edição que saiu há uns anos com a revista Visão mas tem gralhas atrás de gralhas ("picador degelo", "o carrinha" e imensos "o" e "a" colados com a palavra seguinte) para além de um erro ortográfico (o que, na minha opinião, seria impensável em qualquer livro!). Mas pronto... preciosismos.
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