Requiem por um Sonho (1978) de Hubert Selby Jr.
★★★★★
Sinopse:
Bronx, anos 70. Avassaladora viagem ao lado negro do sonho americano e ao universo junkie, Requiem por Um Sonho (1978) é um livro de tirar o fôlego e do qual não se sai ileso. Neste romance adaptado ao cinema por Darren Aronofsky em 2000, quatro vidas autodestroem-se, movidas por vícios e ilusões a que ninguém está imune: da obsessão de Harry e Tyrone pelo dinheiro fácil, alimentada pela heroína, à fama desejada por Marion e aos sonhos televisivos da velha Sara, em technicolor como as suas anfetaminas. Triunfo das dependências sobre o espírito, do materialismo sobre a dignidade, da credulidade sobre o discernimento, este livro-bomba-relógio abate-se sobre o leitor, estilhaçando a ilusória convicção de se estar a salvo num mundo tão desumano e frio como um Inverno em Nova Iorque. [Fonte: JR.Hubert Selby. Requiem por um Sonho. Lisboa: Antígona (2017)]
Opinião:
O meu primeiro contacto com esta história foi há muitos anos atrás, quando uma amiga apreciadora de produções mais "alternativas" me sugeriu o filme. Na altura, Darren Aronofsky não era ainda tão conhecido como hoje em dia e Requiem for a Dream (2000) era apenas o seu segundo filme. Não que atualmente Aronofsky seja muito mais popular porque, apesar de ter realizado filmes bastante conhecidos, como O Wrestler (2000) ou O Cisne Negro (2010), continua a ser um realizador cujas produções são bastante... viscerais. Se considerarmos, portanto, que a grande fatia de quem vai ao cinema o faz como parte de um programa inteiramente passado no shopping center - do qual faz parte um passeio pelas lojas, um jantar e uma ida ao cinema - , até percebo que não haja por aí fãs aos pontapés. Afinal de contas, quem é que consegue ter ânimo para fazer seja o que for depois de ver um filme dele?
Pessoalmente, gostei de todos os filmes dele, mas reconheço que são de cortar os pulsos. O último que vi no cinema foi o Mother! (2017) e ainda hoje tenho bem presente na memória o sentimento desespero e claustrofobia que o filme me provocou.
Não foi uma sensação agradável.
De todo.
Mas uma coisa é certa: quando penso no filme, lembro-me exatamente das sensações que ele provocou. E foi precisamente por também ainda me lembrar bastante bem do Requiem for a Dream (2000) que demorei tanto tempo a ganhar coragem para me lançar na leitura do livro que deu origem ao filme.
Publicado em 1978, sete anos depois do Presidente Nixon ter declarado guerra às drogas - consideradas então o inimigo público número um devido ao facto da dependência ter assumido as dimensões de uma emergência nacional - Requiem for a Dream é um livro que vai acompanhar o percurso de quatro personagens, numa história sobre vícios e sonhos, onde a esperança num futuro risonho se vai transformando, aos poucos, na certeza de que há sonhos que nunca passarão disso mesmo.
Sara Goldfard, uma viúva sedentária que tem a televisão como única companhia, e à frente da qual tenta preencher os vazios deixados pela ausência do marido e do filho com chocolates e bagels recheados. Até ao dia em que recebe uma chamada telefónica...
Na prática, é tudo muito vago. Sara não sabe a que programa se refere, nem quando irá participar, mas a simples ideia de aparecer na televisão leva a que comece, imediatamente, a fazer planos e a imaginar-se a aparecer na televisão, a desfilar em frente às câmaras, com os seus sapatos dourados, cabelo ruivo, e vestido vermelho, tal como usara no dia em que o filho, Harry, fez o seu bar mitzvah.
Mas a Sara atual não é a mesma de outrora.
O cabelo já não é ruivo.
O vestido vermelho já não lhe serve.
Até então, para quê preocupar-se ? Quem é que a ia ver ? Ninguém.
Mas agora vai aparecer na televisão!!! E como tal, tem de estar no seu melhor. Tem de emagrecer, pintar o cabelo, ver todos os concursos para ter a certeza que estará preparada para quando o seu momento chegar. E aí vai brilhar! Vai ser o centro das atenções e todos ficarão boquiabertos quando a virem passar.
Começa uma dieta: a dieta da toranja.
Começa a tomar comprimidos para emagrecer.
Mais comprimidos para emagrecer.
Duplica as doses porque a dose recomendada já não está a fazer efeito.
O dia do concurso deve estar quase a chegar!
De certeza que a qualquer momento a irão contactar ...
Porque é que estão a demorar tanto tempo?!
O filho de Sara Goldfarb, Harry, é toxicodependente. Claro que, no caso dele, não é mesmo dependente. A droga serve apenas para passar um bom bocado e pode parar a qualquer momento.
Nunca pediria à namorada que se prostituísse para arranjar dinheiro.
Nunca chegaria ao ponto de usar água da sanita para preparar a dose.
Porque tudo isso seria bater no fundo, e no fundo ele sabe que não está agarrado.
Harry acredita de tal forma no seu auto controlo que decide, juntamente com o seu amigo Tyrone C.Love, criar o seu próprio negócio.
São tempos felizes. A castanha que conseguem arranjar é DINAMITE e mesmo depois de traçada continua a ter uma qualidade superior à que normalmente circula nas ruas. Mas... o que aconteceria se, de repente, o fornecimento de Harry e Tyrone acabasse ?
Por fim temos Marion, que mantém uma espécie de relacionamento amoroso com Harry. Uma pintora que há muito tempo não produz nada e a quem os pais dão cinquenta dólares por semana para pagar ao psicólogo. Claro que Marion já há muito que deixou de o ver no âmbito da relação terapeuta - paciente.
É claro, logo desde o início, que Marion depende de Harry para suporte emocional e, durante grande parte do livro, para a obtenção de drogas. Basicamente, este trio de consumidores, incita-se constantemente a consumir. Primeiro, de uma forma recreativa. Mas, aos poucos, o consumo da droga já é um fim em si mesmo.
Agora que têm uma ideia geral daquilo de que o livro trata, de certeza que também já conseguem imaginar a desgraça que para aí vem e, na minha opinião, esse é um dos pontos fortes do livro: a sensação, sempre presente, de que alguma coisa está prestes a correr terrivelmente mal. E acreditem que as coisas vão ser sempre piores do que aquilo que estavam à espera.
Ao início tive alguma dificuldade em entender-me com o estilo da escrita de Hubert Selby Jr. porque, para além de não usar a pontuação convencional, utilizava muita gíria de rua. Tive de voltar atrás umas poucas de vezes para perceber quem é que estava a dizer o quê mas, à medida que comecei a avançar na leitura e a conhecer melhor as personagens, isso acabou por se tornar intuitivo e até por conferir um ritmo de leitura bastante interessante.
Outro ponto em que a escrita de Selby resulta muito bem, é na capacidade que tem de nos transportar para a pele de cada uma das personagens. Para a loucura de Sara, o desespero de Harry, a ansiedade de Marion pela próxima dose...
Como referi no início da review, quando peguei no livro já sabia ao que ia. Quer dizer... uma adaptação é sempre uma adaptação mas, já tinha uma ideia geral da história e não estava à espera de um final feliz. Mas se o filme é difícil de digerir, o livro vai ainda mais longe.
Na adaptação de Aronofsky percebemos que o tema central são as dependências e do poder destrutivo que elas podem ter, mas só mesmo no fim é que começamos a ter noção do efeito devastador. Durante grande parte do filme, não se pode dizer que as personagens tenham propriamente mau aspeto ou que tenham as vidas especialmente condicionadas por causa do consumo, e acaba por estar tudo coberto por uma névoa de glamour, em que parecem todos super dinâmicos e com um ar extremamente saudável. No livro, pelo contrário, a inércia chega a ser exasperante e parecem incapazes de pensar para além da próxima dose. Da mesma forma que Sara parece incapaz de pensar para além do dia em que, eventualmente, irá aparecer na televisão.
Pessoalmente, fiquei com alguns dilemas relativamente à forma como me sentia em relação às personagens. Por um lado, não consigo deixar de os ver no papel de vítimas. Vítimas do consumo, vítimas da dependência.
Mas por outro lado... não se pode dizer que alguém lá tenha ido enfiar-lhes a droga na veia, certo? Ou seja, o consumo em si é uma decisão deles, e a espiral descendente e destrutiva em que se encontram é resultado dessa mesma decisão. Atenção que não estou a fazer julgamentos morais, apenas a constatar a realidade.
Um espelho da decadência e dos comportamentos auto-destrutivos, onde as coisas se vão tornando sempre pior do que aquilo que julgávamos possível.
No final, e apesar de não ser um daqueles livros que se lê com ligeireza, e muito menos um livro que nos deixa bem dispostos, Requiem por um Sonho entrou, tal como já sucedera com o filme, para a minha lista de favoritos.
Ellen Burstyn no papel de Sara Goldfarb | Requiem for a Dream (2000) |
Sara Goldfard, uma viúva sedentária que tem a televisão como única companhia, e à frente da qual tenta preencher os vazios deixados pela ausência do marido e do filho com chocolates e bagels recheados. Até ao dia em que recebe uma chamada telefónica...
« Mrs.Goldfarb, vamos lá a saber, o que me diz à ideia de participar num dos mais arrebatadores, mais apaixonantes programas televisivos em antena? »
Na prática, é tudo muito vago. Sara não sabe a que programa se refere, nem quando irá participar, mas a simples ideia de aparecer na televisão leva a que comece, imediatamente, a fazer planos e a imaginar-se a aparecer na televisão, a desfilar em frente às câmaras, com os seus sapatos dourados, cabelo ruivo, e vestido vermelho, tal como usara no dia em que o filho, Harry, fez o seu bar mitzvah.
Mas a Sara atual não é a mesma de outrora.
O cabelo já não é ruivo.
O vestido vermelho já não lhe serve.
Até então, para quê preocupar-se ? Quem é que a ia ver ? Ninguém.
Mas agora vai aparecer na televisão!!! E como tal, tem de estar no seu melhor. Tem de emagrecer, pintar o cabelo, ver todos os concursos para ter a certeza que estará preparada para quando o seu momento chegar. E aí vai brilhar! Vai ser o centro das atenções e todos ficarão boquiabertos quando a virem passar.
Começa uma dieta: a dieta da toranja.
Começa a tomar comprimidos para emagrecer.
Mais comprimidos para emagrecer.
Duplica as doses porque a dose recomendada já não está a fazer efeito.
O dia do concurso deve estar quase a chegar!
De certeza que a qualquer momento a irão contactar ...
Porque é que estão a demorar tanto tempo?!
Marlon Wayans como Tyrone C.Love e Jared Leto como Harry Goldfarb | Requiem for a Dream (2000) |
Nunca pediria à namorada que se prostituísse para arranjar dinheiro.
Nunca chegaria ao ponto de usar água da sanita para preparar a dose.
Porque tudo isso seria bater no fundo, e no fundo ele sabe que não está agarrado.
Harry acredita de tal forma no seu auto controlo que decide, juntamente com o seu amigo Tyrone C.Love, criar o seu próprio negócio.
« Sabes o c'a malta devia de fazer, meu? Hã? Devíamos era de comprar vinte e cinco gramas desta castanha e traçávamos e depois vendíamos metade, topas? Podes crer, chavalo, este pó é bom que chegue pra se traçar pela metade e ainda dar uma moca do caraças. Podes crer, a malta punha de parte um coche pra nós e despachávamos o resto. Podíamos multiplicar o nosso guito por dois. Nas calmas. Nem mais, chavalo. E depois comprávamos um quilo e era logo òtra loiça, meu. »
São tempos felizes. A castanha que conseguem arranjar é DINAMITE e mesmo depois de traçada continua a ter uma qualidade superior à que normalmente circula nas ruas. Mas... o que aconteceria se, de repente, o fornecimento de Harry e Tyrone acabasse ?
Por fim temos Marion, que mantém uma espécie de relacionamento amoroso com Harry. Uma pintora que há muito tempo não produz nada e a quem os pais dão cinquenta dólares por semana para pagar ao psicólogo. Claro que Marion já há muito que deixou de o ver no âmbito da relação terapeuta - paciente.
« Vejo-o de vez em quando e divertimo-nos um coche, sem pressão nenhuma. Curtimos um coche e nada mais. E ele continua a passar-me as receitas para drunfos e pastilhas para dormir. »
É claro, logo desde o início, que Marion depende de Harry para suporte emocional e, durante grande parte do livro, para a obtenção de drogas. Basicamente, este trio de consumidores, incita-se constantemente a consumir. Primeiro, de uma forma recreativa. Mas, aos poucos, o consumo da droga já é um fim em si mesmo.
Ao início tive alguma dificuldade em entender-me com o estilo da escrita de Hubert Selby Jr. porque, para além de não usar a pontuação convencional, utilizava muita gíria de rua. Tive de voltar atrás umas poucas de vezes para perceber quem é que estava a dizer o quê mas, à medida que comecei a avançar na leitura e a conhecer melhor as personagens, isso acabou por se tornar intuitivo e até por conferir um ritmo de leitura bastante interessante.
Outro ponto em que a escrita de Selby resulta muito bem, é na capacidade que tem de nos transportar para a pele de cada uma das personagens. Para a loucura de Sara, o desespero de Harry, a ansiedade de Marion pela próxima dose...
Como referi no início da review, quando peguei no livro já sabia ao que ia. Quer dizer... uma adaptação é sempre uma adaptação mas, já tinha uma ideia geral da história e não estava à espera de um final feliz. Mas se o filme é difícil de digerir, o livro vai ainda mais longe.
Na adaptação de Aronofsky percebemos que o tema central são as dependências e do poder destrutivo que elas podem ter, mas só mesmo no fim é que começamos a ter noção do efeito devastador. Durante grande parte do filme, não se pode dizer que as personagens tenham propriamente mau aspeto ou que tenham as vidas especialmente condicionadas por causa do consumo, e acaba por estar tudo coberto por uma névoa de glamour, em que parecem todos super dinâmicos e com um ar extremamente saudável. No livro, pelo contrário, a inércia chega a ser exasperante e parecem incapazes de pensar para além da próxima dose. Da mesma forma que Sara parece incapaz de pensar para além do dia em que, eventualmente, irá aparecer na televisão.
Pessoalmente, fiquei com alguns dilemas relativamente à forma como me sentia em relação às personagens. Por um lado, não consigo deixar de os ver no papel de vítimas. Vítimas do consumo, vítimas da dependência.
Mas por outro lado... não se pode dizer que alguém lá tenha ido enfiar-lhes a droga na veia, certo? Ou seja, o consumo em si é uma decisão deles, e a espiral descendente e destrutiva em que se encontram é resultado dessa mesma decisão. Atenção que não estou a fazer julgamentos morais, apenas a constatar a realidade.
Um espelho da decadência e dos comportamentos auto-destrutivos, onde as coisas se vão tornando sempre pior do que aquilo que julgávamos possível.
No final, e apesar de não ser um daqueles livros que se lê com ligeireza, e muito menos um livro que nos deixa bem dispostos, Requiem por um Sonho entrou, tal como já sucedera com o filme, para a minha lista de favoritos.
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1 comments
Vi o filme há uns bons anos e é dos meus preferidos. Não sei se tria estômago para o filme. No entanto, não deixo de sorrir sempre que me lembro do Harry a levar a tv pela rua fora
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