Pão com Fiambre (1982) de Charles Bukowski
★★★★☆
Sinopse:
Naquele que é amplamente considerado o melhor de todos os seus romances, Charles Bukowski descreve os longos e amargos anos de uma juventude vivida à margem, através da voz inconfundível de Henry Chinaski, o seu famoso alter ego. Da infância triste e isolada na Alemanha, marcada por um pai violento, à adolescência embriagada por borbulhas, álcool, mulheres e literatura, Bukowski empresta a sua voz crua e impenitente para descrever como foi tornar-se adulto numa América marcada pelo desespero da Grande Depressão.
Publicado pela primeira vez em 1982, o parcialmente autobiográfico mas absolutamente cómico, trágico e nostálgico Pão com Fiambre tornou-se, quase de imediato, um clássico da literatura americana contemporânea.
Poeta dos esquecidos, dos ostracizados e dos marginalizados, Bukowski confirma-se, a cada livro, como um dos escritores mais admiravelmente humanistas do século XX. [Fonte: Bukowski, Charles. Pão com Fiambre. Lisboa: Alfaguara (2002)].
Opinião:
« Tum, tum, tum, tum, tum... »
O Richard Waite estava a bater uma, em honra das pernas e das ancas da Menina Gredis. Finalmente, ele tinha acordado. Talvez não entendesse as regras da sociedade. Mas agora todos o ouviam. A Menina Gredis ouvia-o. As raparigas ouviam-no. Todos sabíamos o que estava a fazer. Era tão burro que nem se lembrou de fazer pouco barulho. E estava a ficar cada vez mais excitado. Os estrondos aumentavam. O seu punho fechado batia na parte de baixo do tampo da secretária.
« TUM, TUM, TUM ... »
Se de alguma forma consideraram o excerto ofensivo, esqueçam Bukowski. O Dirty Old Man da literatura, conhecido pelo seu estilo agressivo e sem censura, é um daqueles autores que pode ser lido por todos, mas que não é para todos. Ainda assim, mais vale ofender algumas pessoas e ser autêntico, do que ter uma legião de fãs e ser uma fraude.
Pão com Fiambre foi publicado em 1982, e é o quarto romance do autor, precedido por Correios (1971), Factotum (1975), e Mulheres (1978). É um romance semi-autobiográfico, narrado na primeira pessoa, e durante o qual iremos acompanhar o alter ego de Bukowski, Henry Chinaski, desde as suas primeiras memórias que remontam a 1920, até ao ataque a Pearl Harbor, em 1941.
No meio das reviews já publicadas aqui no blogue, normalmente acerca de obras ficcionais, distopias e terror, um romance auto-biográfico acaba por estar descontextualizado. Mas, sendo Charles Bukowski um dos meus escritores favoritos, estou disposta a abrir uma exceção.
Gosto de Bukowski pelos motivos que fazem com que muita gente não goste: é um bêbado e um bruto, que escreve o que sente e pensa o que diz. E se há quem goste de verdades convenientes, é sempre uma lufada de ar fresco quando surge alguém disposto a pôr em causa os valores frágeis que sustentam a sociedade em que vivemos.
Em Pão com Fiambre vamos mergulhar na Grande Depressão (1929) e nas assimetrias que daí resultaram. Vamos perceber que o chamado "sonho americano" só era um sonho para alguns. E que, quando se tem uma visão tão acutilante acerca do funcionamento da sociedade, podemos começar a questionar se queremos fazer parte dela.
A história é focada no seu protagonista, Henry Chinaski, que « sabia desde criança que havia algo de errado comigo. Sentia que estava destinado a ser um assassino, um ladrão de bancos, um santo, um violador, um monge, um ermita »...
Chinaski cresceu numa família disfuncional, fortemente afetada pelo desemprego e falta de meios financeiros que resultaram da Crise de 1929. O pai, que « não gostava de pessoas » era um tipo que « estava sempre zangado com alguma coisa. Para onde quer que fôssemos, envolvia-se sempre em discussões com as pessoas ». A mãe, era uma mulher completamente submissa, que defendia que « o Paizinho tem sempre razão », mesmo quando não tinha.
Esta imposição da razão pela força começou cedo para Chinaski, sob a forma de espancamentos ritualizados dos quais o pai parecia tirar especial prazer e que « (...) seriam cada vez mais e mais recorrentes » e em relação aos quais « sentia, sempre, que eram sem um verdadeiro motivo ».
A escola, que poderia trazer alguma normalidade, era o palco de ainda mais violência e « todas as tardes, depois de a escola terminar, havia sempre porrada com os rapazes mais velhos ». Quando chegou ao quinto ano, « os outros alunos já não eram tão hostis e eu começava a ganhar corpo » e, aos poucos, vamos assistindo à transformação de Chinaski, que assume uma postura cada vez mais desafiante que acaba por lhe arranjar sempre problemas: « nunca tinha dito nada de ofensivo, mas alegavam que era a minha "atitude" ».
Mas é precisamente essa "atitude", fortemente marcada pelo sarcasmo e pela crítica, que tornam Pão com Fiambre num livro tão autêntico pois, numa época em que se glorificava o patriotismo, Chinaski, que vinha de uma família vítima da Depressão, aprendeu « que os pobres serão sempre pobres. Que os ricos quando lhes cheira a pobre ainda se divertem com isso ». Até mesmo os hospitais, que deveriam servir toda a gente, « serviam-se dos pobres como cobaia e se resultasse tratavam os ricos. E se não resultasse, ainda havia muito pobre para servir de cobaia ».
Apesar desta visão crua da sociedade e de admitir que « nunca encontraria uma forma de viver confortavelmente com as pessoas », Chinaski não é um daqueles tipos amargurados com a vida, como era o seu pai, sempre a querer ter mais do que aquilo que tinha, e eternamente descontente com o pouco que conseguia. Para Chinaski, bastava uma cama onde dormir e álcool para beber.
« Beber era a única coisa que impedia o homem de se sentir sempre desorientado e inútil.
Tudo o resto continuava e continuava, sem parar.
E não havia nada de interessante, nada.
As pessoas eram todas iguais, restritivas e cuidadosas.
E tenho de viver com esses cabrões para o resto da vida, pensava. »
Chinaski era o verdadeiro outsider. O gajo que se está realmente a borrifar para tudo e para todos. Não era que não gostasse das pessoas, simplesmente não se sentia confortável com elas, com as suas « mentiras bonitas » e com o facto de abdicarem da sua liberdade para pensar e agir como indivíduos.
Uma das coisas de que mais gostei no livro é a forma como a transformação de Chinaski é gradual, e como a sua desilusão em relação às pessoas e ao mundo se vai formando ao longo da sua vida. O pai constantemente insatisfeito com a vida mas com manias de grandeza, a mãe completamente apagada e subserviente, os jogos de poder na escola onde os mais fortes subjugam os mais fracos, as normas sociais que te querem impor o que deves ser e o que deves fazer... Tantas regras, quando na verdade a única coisa que ele queria « era uma gruta no Colorado com comida e bebida para três anos. Limparia o cu com areia. Qualquer coisa menos isto, este tédio, esta trivial e cobarde existência ».
Mas apesar desta existência "à margem", Chinaski não era um tipo amargurado com a vida. Pelo contrário. Ele tentava tirar o máximo proveito de tudo o que fazia, empregando o mínimo de esforço possível. Tal como Bukowski.
O que dizer então de Pão com Fiambre?
Há quem me tenha perguntado se, com tantas críticas sociais, não será demasiado deprimente. Pessoalmente não achei. As críticas fazem parte do crescimento do nosso protagonista e acompanham a evolução da forma como ele vê o mundo. Por outro lado, o livro não é sobre os males da sociedade, nem tão pouco sobre a forma como a sociedade o maltratou. Grande parte do livro é sobre o dia a dia de Chinaski e a realidade é que ele se está literalmente a borrifar para o mundo, para a sociedade e para as pessoas e as críticas fazem parte disso.
Quanto ao facto que referi logo ao início sobre não ser para toda a gente: não é. Por um lado porque a linguagem utilizada é crua e dura, sem artifícios. Bukowski é conhecido por ir direto ao assunto, e sempre defendeu que, se tens algo para dizer, deves dizê-lo sem rodeios. Para quê complicar e andar com rodeios? Por outro lado, porque nem toda a gente se sente confortável a aventuras que envolvem ver as cuecas da vizinha, assediar sexualmente a mãe de um colega ou masturbar um cão. As coisas são o que são e, uma vez mais, Bukowski não está com rodeios e chama as coisas pelos nomes.
Sendo um dos meus escritores favoritos, claro que não podia deixar de recomendar Pão com Fiambre e, se quiserem fugir um bocado ao mainstream e ao que anda aí nos top de vendas, Bukowski é uma excelente aposta! Quem sabe? Até pode ser que gostem...
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