Fahrenheit 451 (1953) de Ray Bradbury

by - setembro 13, 2020

★★★★☆

Guy Montag é um bombeiro. O seu emprego consiste em destruir livros proibidos e as casas onde esses livros estão escondidos. Ele nunca questiona a destruição causada, e no final do dia regressa para a sua vida apática com a esposa, Mildred, que passa o dia imersa na sua televisão.

Um dia, Montag conhece a sua excêntrica vizinha Clarisse e é como se um sopro de vida o despertasse para o mundo. Ela apresenta-o a um passado onde as pessoas viviam sem medi e dá-lhe a conhecer ideias expressas em livros. Quando conhece um professor que lhe fala de um futuro em que as pessoas podem pensar, Montag apercebe-se subitamente do caminho de dissensão que tem de seguir.

Fonte: Bradbury, Ray. Fahrenheit 451. Barcarena: Saída de Emergência (2018).


Opinião: Para os fãs de distopias, como é o meu caso, Fahrenheit 451 faz parte da lista dos livros incontornáveis dentro do género. O problema é que o meu nível de forretice é muito elevado e, como ainda não o tinha encontrado em segunda mão, fui adiando a compra até que fiz uma fantástica descoberta: Fahrenheit 451 era « livro do dia » no pavilhão da Saída de Emergência na Feira do Livro de Lisboa 2020. E isto é sinónimo de quê? 50% de desconto! Pois é meus caros, às vezes vale a pena esperar (outras vezes nem por isso mas, regra geral, a paciência é recompensada).

Nunca tinha lido nada deste autor e, o pouco que sabia acerca de Fahrenheit 451 resumia-se ao facto de que os bombeiros, em vez de apagarem fogos, queimavam livros. Esta ideia, ainda que muito superficial, já era bastante apelativa. E ainda mais interessante ficou quando comecei a ler o livro.


Segundo Bradbury, Fahrenheit 451 é « a story about how television destroys interest in reading literature ». A culpa não é do Estado, não é do Governo, não é da Censura... não é de mais ninguém que não sejam as próprias pessoas, para quem a televisão e o entretenimento é o novo ópio.

Muito se tem escrito acerca do significado deste livro, e muitos ensaístas têm defendido tratar-se de um livro acerca da censura que aqui se traduziria na queima dos livros. No entanto, é o próprio autor quem discorda desta perspetiva. A ideia, defende o autor, é mostrar-nos de que forma uma sociedade que vive completamente dopada e distraída com a tecnologia acaba por perder a noção da realidade e do pensamento independente. Na prática, nem sequer precisa de haver censura governamental porque a própria sociedade censura tudo aquilo que considera ofensivo ou desapropriado. Um humorista é trucidado nas redes sociais porque as piadas são « ofensivas », um escritor é enxovalhado porque aquilo que escreveu é « indecente », e por aí fora. No limite, chegamos ao ponto em que não se pode falar ou escrever acerca de nada porque se corre sempre o risco de alguém ficar ofendido. O que nos irá restar nessa altura ?

« Vamos agora pensar nas minorias da nossa civilização. Quanto maior a população, mais as minorias. Não pise os calos dos amantes de cães, amantes de gatos, dos médicos, dos advogados, dos comerciantes, dos cozinheiros, dos mórmones, dos batistas, dos unitários, dos descendentes de chineses, suecos, italianos, alemães, dos texanos, dos habitantes de Brooklyn, dos irlandeses, dos habitantes do Oregon ou do México. (...) Quanto maior o mercado, menor a margem para controvérsias: lembre-se disso! Todas as minorias, as mais pequenas e maiores minorias, têm de ter o umbigo bem lavado e limpo. Autores, cheios de pensamentos perniciosos, fecham à chave as vossas máquinas de escrever! E eles fecharam-nas. »

Um dos aspetos de que gostei realmente em Fahrenheit 451 é a sua intemporalidade. Reparem que o livro foi publicado em 1953, e já nessa altura Bradbury considerava que a televisão não passava de um poço de entretenimento estupidificante e sem fim. Hoje em dia, o ópio das massas são as redes sociais onde, se repararem, há censura com fartura. Tudo é « ofensivo », impera a mentalidade de rebanho e muitas pessoas nem se dão ao trabalho de questionar e veracidade ou autenticidade das notícias que aparecem no feed. Muitas nem se preocupam com a veracidade ou sequer com a coerência daquilo que escrevem, e se alguém se atreve a dar uma opinião diferente, acaba com a conta bloqueada porque alguém decidiu denunciar aquele conteúdo como impróprio. 

Curiosamente, são muitas vezes os defensores das grandes verdades que menos coerência têm mas que, ainda assim, se sentem uns grandes ativistas porque substituíram a fotografia de perfil por um fundo preto, ou porque puseram « je suis charlie » ou o arco-íris ao lado da foto de perfil. Estão envolvidos em todos os movimentos e na prática não estão envolvidos em coisa nenhuma. E porquê? Porque na verdade não querem genuinamente saber de coisa nenhuma. Querem sentir que fazem parte de algo maior...do movimento. Não interessa se concordam ou não. Nem sequer interessa se sabem do que se trata.  


Esta massificação do pensamento é uma ideia que está muito presente em Fahrenheit 451. Começou com a massificação da rádio, do cinema... « e porque possuíam massa, tornaram-se mais simples (...). Os filmes e a rádio, as revistas, os livros foram ficando todos ao mesmo nível. Uma espécie de pudim pastoso como norma comum ». E lá voltamos à questão que referi acima: a censura feita pela sociedade como forma de controlo social. Os filmes têm de incluir minorias mesmo em cenários em que não faz sentido, pois caso contrário são acusados de discriminação. As revistas de moda têm de incluir fotografias com modelos obesas, pois caso contrário é discriminatório. Os humoristas têm de evitar fazer piadas com determinados assuntos, pois caso contrário são linchados. E acabamos, basicamente, transformados numa carneirada, em que ter uma opinião diferente é alvo de críticas negativas e censura.

É mais fácil termos a mesma opinião que todos os outros. Lemos os títulos da notícia que aparece no feed e comentamos a partir daí. Procurar outras fontes? Comparar informação? Refletir acerca do que acabamos de ler? Pura perda de tempo.

« Do berçário à universidade e de volta ao berçário: eis o padrão intelectual dos últimos cinco séculos ou mais. (...) Tudo digerido, resumido, digerido-resumido. Política? Uma coluna, duas frases, um título. (...) A vida é o imediato, o emprego é o que conta, e depois do trabalho venham os prazeres. Porquê aprender algo que não se limite a carregar em botões, ligar e desligar interruptores, apertar porcas e parafusos? »

E é isto que vão encontrar em Fahrenheit 451. Pessoalmente achei que, mais do que a história em si - que, aliás, não é muito mais do que aquilo que podemos encontrar na sinopse - , aquilo que realmente marca o livro é a crítica social com que nos deparamos, sobretudo por ser tão fácil estabelecer um paralelismo com a nossa realidade atual e percebermos que, tal como George Orwell parece ter previsto o Grande Irmão, Bradburry previu a estupidificação da raça humana.

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