A Fome (2018) de Alma Katsu
★★★★☆
Sinopse:
Tamsen Donner deve ser uma bruxa. É a única explicação para a série de azares que têm afetado a caravana Donner, que se arrasta pelas áridas extensões do Oeste americano. Falta de comida, violência e a morte misteriosa de uma criança levam os pioneiros à beira da loucura. Pior: não se conseguem libertar da sensação de que alguém - ou algo - os está a perseguir. E quando os membros da expedição começam a desaparecer, todos os vestígios de sanidade e civismo se perdem.
Baseado em factos verídicos, esta é a saga de 90 homens, mulheres e crianças que sofreram um dos maiores desastres da exploração do Oeste americano. Foram apenas as circunstâncias do acaso ou algo desesperado, doente e esfomeado causou a ruída de todos ?
Fonte: Katsu, Alma. A Fome. Barcarena: Saída de Emergência (2018)
Opinião (contém spoilers): O que acontece quando se pega em acontecimentos reais envoltos em mistério e se adicionam elementos de terror? Um livro finalista do Best Horror Book of the Year no Goodreads, e que vos vai prender do início ao fim.
Sabem que ficção histórica não costuma ser um daqueles géneros que eu leia muito mas, se já em 2018 com O Terror a experiência foi interessante, com A Fome superou as expectativas! Sobretudo porque não tinha pesquisado muito acerca do livro antes de o começar a ler e nada me poderia preparar para o que aí vinha.
Repararam que a sinopse refere que a história é «baseada em factos verídicos»? Factos verídicos, e uma tragédia cujos contornos permanecem, ainda hoje, por desvendar... Aquilo que Alma Katsu se propôs a fazer, e que na minha opinião conseguiu com extraordinário sucesso, foi recontar a tragédia Donner, misturando ficção e realidade, numa narrativa onde os elementos sobrenaturais são tão aterrorizantes como a realidade.
Mas, o que é que realmente sabemos acerca da tragédia Donner?
Que, a 14 de Abril de 1846, nove caravanas com 32 elementos das famílias Donner e Reed, e respetivos empregados, saíram de Springfield. No espaço de um mês, chegaram a Missouri e, a 12 de Maio de 1846, juntaram-se a uma outra caravana com cerca de 500 elementos, com destino ao oeste.
Ao fim de seis semanas, e 1.050 quilómetros depois, chegaram a Fort Laramie onde tomaram conhecimento da existência de uma rota alternativa (Hastings Cutoff) que, supostamente, não só lhes permitiria encurtar a viagem, como também evitar o confronto com tribos indígenas. Mais tarde, descobrir-se-ia que Landsford Hasting era um charlatão, cujo objetivo era atrair pioneiros para a Califórnia, que na altura pertencia ao México, com a esperança de que os Estados Unidos desafiassem o México pelo território. Ainda assim, foi com base nesta informação que foi tomada uma decisão que resultaria numa das maiores tragédias da expedição no oeste americano: a divisão da caravana. Enquanto a maioria optou por continuar viagem pelo já conhecido Oregon Trail, as caravanas Donner e Reed, formadas por 23 carroças com 29 homens, 15 mulheres e 43 crianças optaram por se aventurar pelo Hastings Cutoff. De nada valeram os avisos...
Infelizmente, o atalho não era realmente um atalho, a viagem demorou mais do que o esperado e, no início de Novembro, acabaram por ficar retidos pela neve em Sierra Nevada, uma cordilheira situada na parte oriental do estado da Califórnia. Sem forma de fazer face ao inverno rigoroso e à falta de alimentos, muitos deles tiveram de recorrer ao canibalismo para sobreviver e, dos 87 pioneiros, apenas 48 foram encontrados com vida pelas equipas de resgate que apenas os conseguiram alcançar cerca de 4 meses depois, em Fevereiro de 1847...
Isto é o que sabemos, e a realidade é que, mesmo sem elementos sobrenaturais, já é suficientemente assustador. Reparem que as caravanas não eram compostas apenas por homens destemidos e aventureiros, com vontade de se aventurarem para lá de tudo o que conheciam. Estamos a falar, sim, de famílias inteiras, que venderam tudo o que tinham na esperança de poderem começar uma vida melhor numa terra de oportunidades. Temos homens de negócios, agricultores, mulheres cuja vida consistia em cuidar dos filhos... enfim, dezenas de pessoas sem o mínimo de preparação para enfrentarem tudo aquilo que os esperava.
Todo esse desespero é muito bem explorado em A Fome e, apesar de muitas opiniões se centrarem no twist sobrenatural, aquilo que mais me impressionou foram as dificuldades reais com que se depararam: a fome, o medo do desconhecido, os conflitos que começam a surgir entre as pessoas mas, sobretudo, o desespero. O facto não termos apenas heróis destemidos, mas também pessoas com sonhos, medos e esperanças, acaba por proporcionar uma visão muito mais humana das personagens, e essa foi uma das razões que me levou a gostar tanto do livro.
Outro aspeto que só viria a descobrir depois de terminar o livro, é que os eventos descritos, assim como os nomes e até os destinos de algumas das personagens, são os mesmos que os dos membros da caravana nos quais se basearam. Claro que não deixa de ser uma obra de ficção e, como tal, teremos elementos puramente ficcionais como Elitha Donner poder ouvir os mortos, ou Stanton e Mary se terem apaixonado. No entanto, existem outros elementos que são autênticos, como o caso de Lewis Keseberg ter sido acusado de recorrer ao canibalismo enquanto esteve preso no lago Truckee.
A história é-nos narrada sob o ponto de vista de seis personagens: Tamsen Donner, Charles Stanton, Elithah Donner, James Reed, Mary Graves e Edwin Bryant. Sem dúvida que resultou muito melhor do que se tivéssemos um narrador omnipresente a relatar o que se estava a passar, pois cada uma destas personagens tem uma história passada muito distinta - que também nos vai sendo revelada, aos poucos - que acabará por influenciar a forma como lidam com tudo o que se está a passar, e como lidam com os companheiros.
Mas, falei algures de um twist sobrenatural, não foi ? O que vos posso dizer é que não é algo que esteja sempre presente e, durante algum tempo, dei comigo a questionar se haveria de facto algo que estivesse a atacar a caravana. Tudo o que se passa é tão subtil e suscetível de outras interpretações, que acaba por ser inevitável que procuremos explicações mais racionais. Para isto, contribui bastante o facto de nunca vermos as supostas criaturas que estão a atacar a caravana. Vemos o resultado dos ataques, alguns rastos, ouvimos algumas histórias... mas tão depressa como aparecem, elas parecem desaparecer, nunca deixando no entanto de fazer com que sintamos a sua presença.
Para mim, e considerando o cenário e as circunstâncias onde tudo se passa, este terror velado resulta muito melhor do que resultaria o terror explícito. No livro A Maldição de Hill House aborreci-me de morte porque nunca havia a ideia de que se passava algo mas, nunca se concretizava. Aqui, o princípio parece o mesmo mas, a história não se centra apenas nas alegadas criaturas e o terror acaba por estar presente em praticamente tudo o que acontece: se não foram atacados, morrem de fome. Se não morrerem de fome, morrem de frio. Se não morrerem de fome nem de frio, provavelmente são mortos por alguém...
Quanto às criaturas, parece que as opiniões divergem. Há leitores que dizem tratar-se de zombies. A forma de contágio é realmente semelhante, assim como o desejo de carne humana. No entanto o facto de parecerem selecionar quem e onde atacar revela alguma capacidade de planificação, o que me parece incompatível com o comportamento típico dos zombies. Provavelmente, se fossem zombies, tinham-se logo lançado à caravana de forma desenfreada. Outros leitores defendem tratar-se de lobisomens. Mais uma vez, a forma de contágio é semelhante mas não ocorrem as transformações radicais que vemos nestes casos. Para além disso, o indivíduo afetado sofre transformações permanentes, enquanto que no caso do típico lobisomem, essas transformações só se manifestam em alturas específicas, como noites de lua cheia.
O que é que nos resta ? A explicação dada a Bryant por uma das tribos: que são wendigo, criaturas devoradoras de homens ou espíritos malignos, que podem aparecer como um monstro com algumas caraterísticas de um ser humano ou como um espírito que possuiu um ser humano e os tornou monstruosos. Mas, por outro lado, wendigo é também o nome de uma síndrome cultural que tem como principais sintomas um desejo intenso por carne humana, associado ao receio de se tornar canibal. No contexto do livro, ambas as opções são válidas... pelo menos até descobrirmos quem foi o paciente zero.
O que dizer então sobre A Fome? Para mim, foi uma daquelas leituras que me causou alguma ansiedade e me deixou em estado de alerta. Todo o ambiente está tão bem conseguido, que me senti um dos elementos da caravana, sempre alerta a tentar descobrir de onde viria o próximo ataque.
Outro aspeto positivo é não ser um livro sobre monstros, ou sobre os desafios que estes pioneiros tiveram de enfrentar, mas sim um livro que vai muito mais além e aborda temas como violação, incesto, amores proibidos, homossexualidade e outros preconceitos tão enraizados naquela época. Mas, apesar de os abordar, não é um livro sobre preconceitos (para isso já bastam as séries da Netflix que repetem estes assuntos até à náusea e muitas das vezes sem que haja sequer grande contextualização). Tudo se encaixa perfeitamente e faz parte da história individual das personagens, que vamos descobrindo aos poucos.
Um outro ponto a favor é a forma como Alma Katsu alterna entre o geral e o particular. Temos muitos acontecimentos centrados na caravana, como um todo, e nas interações entre os que dela fazem parte. Mas temos também vários capítulos que são como uma viagem ao passado das personagens mais importantes, e que acabam por servir para explicar determinados comportamentos ou ideias que eles têm e que nos intrigam. Para quem valoriza a construção de personagens, A Fome é um daqueles livros que não desilude.
Mas, o melhor mesmo é lerem o livro, tirarem as vossas próprias conclusões e depois, não se esqueçam de comentar e dizer o que acharam! Entretanto, se quiserem explorar um pouco mais acerca do livro, visitem o site da autora e ouçam o podcast Damned History, onde ela fala acerca da história por detrás do livro. Se tiverem curiosidade em ver um filme baseado nos eventos reais, espreitem The Donner Party (2009)
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