As Filhas de Eva (2014) de Louise O'Neill

by - outubro 12, 2018

★★★☆☆
Sinopse: 
Num mundo obscuro e perturbador, as raparigas já não nascem de forma natural, as mulheres são doutrinadas nas escolas, treinadas nas artes de satisfazer os homens até estarem prontas para o mundo exterior. No final dos estudos, as melhores alunas tornam-se "companheiras" e permitem-lhes viver com o marido e gerar filhos até já não serem necessárias. Para as raparigas que ficam para trás, o futuro - como concubina ou professora - é sombrio.

As amigas freida e isabel têm a certeza de que irão ser escolhidas como companheiras - estão entre as melhores alunas do seu ano. Mas, à medida que se aproxima o ano final, isabel faz o impensável e começa a engordar... Nessa altura chegam a este ambiente protegido os rapazes, ansiosos por escolher uma noiva.

Uma crítica à obsessão da sociedade actual com o aspecto e o comportamento das mulheres.

Um livro ousado, arrepiante e totalmente viciante.



Opinião: 
Quem segue UmBlogueSobreLivros sabe que as distopias são bastante apreciadas por aqui. Por isso, quando descobri este As Filhas de Eva (título original: Only Ever Yours) , considerado pelas críticas como herdeira de A História de Uma Serva, pu-lo logo na lista de livros a ler.

No entanto, embora compreenda a ideia por detrás desta comparação, decididamente que nem Louise O'Neill é a Margaret Atwood, nem As Filhas de Eva estão ao nível de A História de Uma Serva
  

Existem, ainda assim, algumas semelhanças entre os livros, sendo a principal o facto de ambos nos remeterem para uma sociedade patriarcal distópica.

Em A História de Uma Serva, uma crise de infertilidade que assolou o mundo, levou a que as mulheres fossem convertidas em úteros ambulantes, forçadas a manter relações sexuais com o homem a quem foram atribuídas, com o único propósito de procriar (ler opinião "A História de Uma Serva"). 

Em As Filhas de Eva, por sua vez, somos transportados até um futuro pós apocalíptico, onde o gelo derreteu, os mares se uniram e os países de baixa altitude foram submersos, condenados a não serem mais vistos.

« No início houve um certo alívio, a esperança de que tivesse sido encontrada uma solução orgânica para a crise populacional, mas depressa a esperança se transformou em medo. As pessoas que restavam deslocaram-se mais e mais para o interior, até que as Zonas foram formadas para proteger os poucos resistentes do sol escaldante e das águas que não paravam de subir. O Projecto Noé. Dois a dois, os humanos entraram em passo de marcha, avançando para a criação de um novo mundo.»
As Filhas de Eva (p.52)

Mas, apesar deste novo mundo parecer promissor, surgiu alguma preocupação quando, à semelhança do que se passou em A História de Uma Serva, os anos foram passando sem que nascessem bebés. Neste caso concreto, bebés do sexo feminino. A determinado ponto, já restavam poucas mulheres originais e, não estando nenhuma delas já em idade fértil, a ideia da extinção da espécie humana parecia cada vez mais inevitável. 

Mas, como se costuma dizer, a necessidade aguça o engenho, e não tardou até que se encontrasse uma solução: a criação - ou talvez, o fabrico, seja o termo mais adequado - de mulheres em laboratórios de engenharia genética. Claro que, já que se iam criar mulheres, mais valia aproveitar e, portanto, optou-se por fazer umas modificações aqui e acolá para que fossem o mais perfeitas possível. Ainda assim, um dos lemas, era "É sempre possível melhorar".



Bom, estas mulheres, a quem era dado o nome de Evas, eram então desenhadas e incubadas em úteros de plástico, sendo depois, aos quatro anos de idade, colocadas nas Escolas, instituições criadas especificamente para as albergar e educar até aos dezasseis anos, idade em que seriam designadas para Companheiras, Concubinas ou Castidades.

E aqui temos o primeiro aspecto interessante: o facto de as Evas serem fabricadas de origem, e moldadas ao longo da sua vida com o único propósito de satisfazerem as necessidades dos homens.

« O número de evas desenhadas num determinado ano corresponde sempre a três vezes o número de rapazes nascidos nesse mesmo ano, de forma a dar satisfação às necessidades de companheiras e concubinas. Podemos ter sorte e ser desenhadas no ano em que o Presidente da Câmara, um Engenheiro Genético e um Cirurgião tenham tido filhos. Ou podemos ter sido desenhadas para companheiras dos filhos de merceeiros, sapateiros ... ou de fabricantes de carne, por misericórdia.»
As Filhas de Eva (p. 133)

A protagonista deste livro é, ela própria, uma eva. 
A eva #630 para ser mais específica. 
Ou Freida, como algumas colegas a chamam.

Será através da sua narrativa na primeira pessoa que iremos conhecer a vida na Escola, especialmente nos meses que antecedem a Cerimónia.

« Este é o momento decisivo, para o qual passaram dezasseis anos a preparar-se. É a altura de darem o vosso contributo para a sociedade que vos criou, seja como companheiras ou como concubinas. Ou como castidades, claro. Todas têm um papel a desempenhar.»

As Filhas de Eva (p.44)

Rapidamente percebemos que todas as evas vivem em regime de reclusão, sem qualquer contacto com o mundo exterior, à excepção de um programa que estão autorizadas a ver e que é uma clara alusão ao tão famoso como fútil « keeping up with the kardashians »

Nos quartos individuais, espelhados do chão até ao tecto, todas as noite são difundidas mensagens, que se espera, sejam absorvidas durante o sono:

« Sou uma boa menina. Sou bonita. Sou sempre despreocupada. 
Sou uma boa menina. Sou atraente para os outros. Sou sempre agradável.
Sou bonita. Sou uma boa menina. Faço sempre o que me mandam.»

As Filhas de Eva (p.10)


Os medicamentos são distribuídos como fazendo parte do cardápio diário, e entre eles contam-se comprimidos para dormir, comprimidos para evitar que as evas ultrapassem o peso ideal predefinido e, claro está, comprimidos à base de ipecacuanha para as ajudar a vomitar.

Esta preocupação excessiva com o peso e com a imagem tem, no entanto, uma razão de ser pois, apenas as evas cuja classificação as posicione no top 10, poderão sequer pensar em vir a ser escolhidas por um Herdeiro, para se tornarem suas companheiras e gerarem filhos.

Ora, isto remete-nos para aquele que foi o segundo ponto que me saltou à vista neste livro: a clara analogia com redes como o facebook e o instagram, onde as pessoas parecem, também elas, obcecadas em publicar a melhor fotografia e em obter o maior número de visualizações, seguidores e likes. Em As Filhas de Eva, como já referi, todas elas vivem num regime de reclusão, tendo no entanto acesso a uma rede social, o MyFace, onde cada uma delas é obrigada a publicar diariamente uma foto a fim de ser votada pelos Herdeiros. No final, os votos são contados e as classificações actualizadas e publicadas online.

Ocupar o primeiro lugar no ranking das evas é motivo de orgulho e de inveja mas, uma coisa está garantida: a popularidade entre todas as outras evas.

Portanto, já podem imaginar o ninho de víboras que aquela escola é ... Cada uma delas a querer superar a outra, porque sabem que, no final, apenas as melhores serão escolhidas para Companheiras.

« O papel da companheira é simples. Deve seguir a orientação do marido em todas as ocasiões. Quanto mais vezes se deitarem com os vossos maridos, maiores as possibilidades de conceberem um filho para dar continuidade ao nobre legado da Zona.»
As Filhas de Eva (p. 218)

Às restantes, caberá o lugar de Concubina.

« Aquelas de vós que forem escolhidas para este terço virão juntar-se a uma tradição muito antiga. As concubinas sempre fizeram parte da sociedade, e sempre foram uma parte importante. Só têm de se assegurar de que o tipo com quem estão está a divertir-se. É fácil! »
As Filhas de Eva (p. 219)

Ou de Castidade.

« Como se alguém quisesse ser uma castidade, com a perspectiva de uma vida inteira a cuidar de estudantes mais jovens e casadoiras, enquanto se vai ficando cada vez mais velha e decrépita, sem o luxo de uma Data de Término estabelecida para lhe preservar a beleza. »
As Filhas de Eva (p. 56)


Até aqui tudo bem. 
Como vêem, o ambiente parece bastante interessante e opressivo, e tinha tudo para resultar mas, pessoalmente, o livro pareceu-me um pouco juvenil demais
Claro que não posso reclamar muito visto que, afinal de contas, o livro foi considerado como juvenil, destinando-se portanto aos jovens adultos e eu já saí dessa faixa há uns bons anos... 

Mas, mais do que isto, aquilo de que realmente menos gostei foi a falta de coerência no que diz respeito ao conteúdo em si e ao público a que se destina. Ou seja, por um lado temos um cenário muito bem construído, um tema interessante e uma série de conceitos que eu consideraria enquadrarem-se num livro mais ... adulto (não sei se será o termo mais adequado mas, percebem a ideia). No entanto, por outro lado, o facto das evas surgirem como um bando de miúdas histéricas, obcecadas com futilidades, acaba por tornar aquilo numa espécie de escola secundária pós apocalíptica. 

O melhor exemplo que me ocorre para terem uma ideia do ambiente é: Imaginem o Lord of The Rings mas, durante a demanda para destruir o anel, passavam o tempo a discutir uns com os outros quem tem o adereço da moda mais bonito, ou o Legolas começava a falar mal nas costas do Frodo, a dizer que ele come demasiado e que vai ficar gordo e depois não vai conseguir subir o Mont Doom porque vai estar demasiado gordo.




Mas, nem tudo é mau.
Aliás, como disse, o livro sofre ali de uma espécie de "dupla personalidade" e, quando a acção não anda em torno das futilidades e discussões do ensino secundário, é realmente interessante. 

Outro ponto a favor é que é extremamente visual do ponto de vista dos cenários e, sem grande esforço, conseguimos construir os espaços onde a acção vai decorrendo. O mais incrível nisto, é que a autora o consegue sem se alongar em grandes descrições e detalhes.

De uma forma geral, diria que o público jovem ao qual o livro e destina, irá certamente identificar-se com algumas situações que surgem no livro. Aqueles de nós que já passaram a fase da adolescência, conhecem a pressão dos pares, a necessidade do sentimento de pertença e de, de certa forma, agradar aos outros enquanto forma de ser aceite e se sentir integrado. Contudo, aqueles de nós que já passaram a fase de adolescência poderão não se identificar com todo este teenage drama (porque há situações em que realmente ficamos a pensar: Mas porque raio é que ela dá tanta importância aquilo que a outra pensa ?!) e gostasse que a autora tivesse dedicado menos páginas a dramas em torno na roupa e do peso, e mais páginas a explorar outros horrores. Bom, sei que eu dispensava de bom grado algumas páginas do drama de a-minha-roupa-é-mais-fixe e vamos-ver-quem-é-mais-bonita.

Seja como for, é um livro que se lê bastante bem e que, apesar de haver um mistério lá pelo meio que, desde meio do livro, está mais ou menos desvendado, consegue manter alguma tensão até ao momento final. Diria que é salvo pela reviravolta, de certa forma previsível e em parte inesperada.


Se gostaram deste livro poderão também gostar de:
📖 A História de Uma Serva | Margaret Atwood
📖 O Poder | Naomi Alderman





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