Ensaio Sobre a Cegueira (1995) de José Saramago
★★★★★
Sinopse:
Um homem fica cego, inexplicavelmente, quando se encontra no seu carro no meio do trânsito. A cegueira alastra como um rastilho de pólvora. Uma cegueira colectiva. Romance contundente. Saramago a ver mais longe. Personagens sem nome. Um mundo com as contradições da espécie humana. Não se situa em nenhum tempo específico. É um tempo que pode ser ontem, hoje ou amanhã. As ideias a virem ao de cima, sempre na escrita de Saramago. A alegoria. O poder da palavra a abrir os olhos, face ao risco de uma situação terminal generalizada. A arte da escrita ao serviço da preocupação cívica. (fonte:www.portoeditora.pt)
Um homem fica cego, inexplicavelmente, quando se encontra no seu carro no meio do trânsito. A cegueira alastra como um rastilho de pólvora. Uma cegueira colectiva. Romance contundente. Saramago a ver mais longe. Personagens sem nome. Um mundo com as contradições da espécie humana. Não se situa em nenhum tempo específico. É um tempo que pode ser ontem, hoje ou amanhã. As ideias a virem ao de cima, sempre na escrita de Saramago. A alegoria. O poder da palavra a abrir os olhos, face ao risco de uma situação terminal generalizada. A arte da escrita ao serviço da preocupação cívica. (fonte:www.portoeditora.pt)
Opinião:
A primeira vez que li o Ensaio Sobre a Cegueira foi há cerca de 15 anos atrás, tinha eu 20 anos. Já nessa altura, recordo-me, foi um livro que não me deixou indiferente e que viria a abrir caminho para a descoberta de outras obras de José Saramago. Algo que, em 2005, tive oportunidade de lhe dizer pessoalmente (cof* cof* não consegui evitar este momento de gabarolice), quando lhe pedi que me autografasse não só o livro a cujo lançamento fui, mas também aquele que foi, e ainda é, um dos meus livros favoritos e uma das distopias mais viscerais que já tive oportunidade de ler.
A primeira vez que li o Ensaio Sobre a Cegueira foi há cerca de 15 anos atrás, tinha eu 20 anos. Já nessa altura, recordo-me, foi um livro que não me deixou indiferente e que viria a abrir caminho para a descoberta de outras obras de José Saramago. Algo que, em 2005, tive oportunidade de lhe dizer pessoalmente (cof* cof* não consegui evitar este momento de gabarolice), quando lhe pedi que me autografasse não só o livro a cujo lançamento fui, mas também aquele que foi, e ainda é, um dos meus livros favoritos e uma das distopias mais viscerais que já tive oportunidade de ler.
Como muitos de vocês saberão ou, terão ouvido dizer, José Saramago é um daqueles autores que, ou se gosta, ou não se gosta. Mas, já o ditado diz que não se pode agradar a gregos e a troianos. Por isso, se têm curiosidade em explorar a obra dele, a melhor sugestão que posso dar é não o fazerem com ideias pré-concebidas. Sim, o estilo de escrita é diferente daquilo a que estamos habituados mas, a meu ver, é precisamente essa particularidade que a caracteriza. Depois de entrarem no ritmo, vão ver que pouca diferença faz o facto do autor não usar a pontuação na sua forma tradicional.
Claro que, ainda assim, pode haver quem não goste. Ponto final.
Quanto a isso, pouco há que possamos argumentar.
Ainda assim, sou da opinião que muitas das pessoas que repetem ad aeternum, como se de uma verdade insofismável se tratasse, que não lêem Saramago « porque não usa pontuação », nunca leram um livro dele que fosse. E, como mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo, já em diversas vezes tive oportunidade de comprovar esta minha teoria mas, lá está, não quer dizer que não haja quem tenha lido e que não tenha gostado do estilo.
Seja como for, o Ensaio Sobre a Cegueira é uma daquelas obras que merece mesmo uma oportunidade, com ou sem pontuação.
Publicado em 1995, o livro fala-nos de uma epidemia de cegueira branca que, ninguém sabe porque começou, como se propaga, nem como se combate ...
O primeiro caso surge num cenário que poderia ser o do dia a dia de muitos leitores: os carros estão parados antes do semáforo e, quando o sinal verde se acende logo se nota que, nem todos arrancaram por igual e que, o primeiro carro da fila do meio, permanece parado.
« Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego. »
Ensaio Sobre a Cegueira
Aquilo que, ao início, nos parecia um caso isolado, provocado pelos "nervos", como tão diligentemente uma mulher que passava se prontificou para opinar, rapidamente se propaga. Os acidentes de carro multiplicam-se, com os condutores a cegarem subitamente e a terem de abandonar so carros, aturdidos e desorientados, sem saberem exactamente onde estão nem como regressar a casa. Andar é agora a forma mais segura de chegar do ponto A ao ponto B, isto se não cegarem pelo caminho ...
Blindness (2008) |
O Governo, que alega lamentar « ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e dever, proteger por todos os meios as populações da crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidémico de cegueira » rapidamente decide que, enquanto não se apurassem as causas, o tratamento e a cura do mal branco, « todas as pessoas que cegaram, e também as que com elas tivessem estado em contacto físico ou em proximidade directa, seriam recolhidas e isoladas. ».
E assim vamos assistindo a grupo e grupos de cegos a serem colocados no dito isolamento. Mas, se ao início o Governo ainda aplicava alguns critérios quanto aos espaços a utilizar, à medida que o número de casos de cegueira aumenta, « o Governo não teve outro remédio que fazer marcha atrás em acelerado, ampliando os critérios que estabelecera sobre lugares e espaços requisitáveis, do que resultou a utilização imediata e improvisada de fábricas abandonadas, templos sem culto, pavilhões desportivos e armazéns vazios ».
Blindness (2008) |
A nossa narrativa irá centrar-se nos grupos de cegos que são colocados num manicómio abandonado, murado em todo o seu perímetro, e composto por duas alas que, inicialmente, se destinavam a manter os cegos e os suspeitos de contágio separados. Todos os dias, através do altifalante, o Governo repete as mesmas instruções que, esperam eles, sejam cumpridas por aqueles a quem se dirigem, « como cumpridores cidadãos que devem ser ». No entanto, rapidamente percebemos que esta cegueira branca está fora de controlo e que, todos aqueles que foram colocados na chamada quarentena, estão abandonados à sua sorte.
« Isto o melhor era deixá-los morrer à fome, morrendo o bicho acabava-se a peçonha. »
Ensaio Sobre a Cegueira
Agora imaginem centenas de pessoas, que cegaram subitamente, colocadas em isolamento e totalmente dependente do exterior para obter comida. Aliás, não precisamos ir mais longe: tentem vocês fechar os olhos e realizar uma tarefa mais ou menos complexa em casa. Embora conheçam a casa e saibam onde estão as coisas, provavelmente vão acabar por esbarrar em algum obstáculo. Pensem agora como seria se fossem largados num sítio totalmente desconhecido, cheio de pessoas, também elas, desconhecidas e vos dissessem "Meu caro, agora está por sua conta. Nós aí não entramos para não sermos contagiados! A única coisa que fazemos é deixar uns caixotes junto ao perímetro mas, têm de ver entre vocês como é que os vão buscar. Nós aí é que não entramos! E se alguém se aproximar demasiado do gradeamento, disparamos para matar!"
É neste contexto que, ao longo do livro, vamos assistindo à degradação do espaço em que as pessoas vivem, e à degradação das próprias pessoas por serem obrigados a viver daquela forma.
Blindness (2008) |
« Não é só o estado a que rapidamente chegaram as sentinas, antros fétidos, como deverão ser, no inferno, os desaguadoiros das almas condenadas, é também a falta de respeito de uns ou súbita urgência de outros que, em pouquíssimo tempo, tornaram os corredores e outros lugares de passagem em retretes que começaram por ser de ocasião e se tornaram de costume (...). Não tem importância, ninguém me vê, e não iam mais longe.»
Ensaio Sobre a Cegueira
Pessoalmente, aquilo que mais me deixou a pensar, foi precisamente a ideia de « Não tem importância, ninguém me vê ». Sendo nós um animal social, muitos nos nossos comportamentos são, de certa forma, moldados para irem ao encontro daquilo que é esperado de nós.
Mas... e se ninguém nos visse ?
Será que nos continuaríamos a comportar exactamente da mesma forma ?
Vou mais longe: e se ninguém nos visse e tivéssemos de sobreviver neste cenário?
Até onde é que estaríamos dispostos a ir ?
E esqueçam a parte do politicamente correcto porque isto é um blogue literário e não o facebook.
Por isso é que embora existam personagens no livro cujo comportamento nos leva a classificá-las, automaticamente, como más, a verdade é que aquelas que classificamos como boas também cometeram actos que, talvez faça com que passem a integrar o primeiro grupo. Será assim um acto mau, praticado por uma pessoa má, mais grave do que um acto mau praticado por uma pessoa boa ? E acreditem que, quando lerem o livro, vão saber exactamente a que me refiro.
Considerações filosóficas à parte, outro aspecto que me parece importante acrescentar é a qualidade da escrita. Já no início referi que há muita gente que diz não gostar da obra de José Saramago "porque não usa pontuação" mas, se estiverem dispostos a ultrapassar essa barreira, vão chegar à conclusão que vale bem a pena. Para ser franca, não tenho grande termo de comparação porque este é o único autor português que alguma vez li mas, é impossível não nos identificarmos porque, como é que hei-de-explicar ... usa termos e lugares com os quais nos identificamos, coisas que fazem parte do nosso dia a dia, expressões que a maioria de nós conhece, como é o caso do « morrendo o bicho acabava-se a peçonha » e, creio que inevitavelmente, acabamos por sentir que conhecemos os lugares e por nos identificarmos com as personagens.
Por outro lado, e ainda no que diz respeito ao estilo, Saramago consegue ser bastante descritivo. E aqui, entenda-se, não emprego o "bastante" de forma pejorativa. Pelo contrário! O que o autor consegue fazer, com bastante sucesso, é transportar-nos para o local da acção, de tal forma que dei comigo a fazer uns esgares perante determinadas descrições ou a parar para reflectir sobre certos detalhes.
Posto isto, pouco mais há que possa acrescentar mas, como disse logo no início, o Ensaio Sobre a Cegueira continua a ser a distopia mais visceral que já li, com a vantagem que, embora tratando-se de uma obra de ficção, vem com uns bónus que nos vão deixar a reflectir durante algum tempo, mesmo depois de terminada a leitura.
« Provavelmente só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são. »
Ensaio Sobre a Cegueira
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