O Coração é o Último a Morrer (2015) de Margaret Atwood
★★★★☆
Sinopse:
Charmaine e Stan estão desesperados: sobrevivem de pequenos trabalhos menores e vivem no carro. Portanto, quando vêem um anúncio a Consiliência, uma «experiência social» que oferece empregos estáveis e casa própria, inscrevem-se imediatamente. A única coisa que têm de fazer em troca é ceder a liberdade mês sim, mês não, trocando a sua casa por uma cela de prisão.
Charmaine e Stan estão desesperados: sobrevivem de pequenos trabalhos menores e vivem no carro. Portanto, quando vêem um anúncio a Consiliência, uma «experiência social» que oferece empregos estáveis e casa própria, inscrevem-se imediatamente. A única coisa que têm de fazer em troca é ceder a liberdade mês sim, mês não, trocando a sua casa por uma cela de prisão.
A princípio tudo corre bem. Não tarda porém, a que Stan e Charmaine, sem saberem um do outro, comecem a desenvolver obsessões apaixonadas pelos seus «alternantes», o casal que ocupa a sua casa quando estão na prisão. E, à medida que as pressões do projecto, a desconfiança mútua, a culpa e o desejo vão ganhando terreno, a experiência começa a perder a sua aura de «prece atendida» e a parecer-se mais com uma terrível profecia.
Opinião:
Andei algum tempo a pensar sobre se haveria de comprar A História de Uma Serva porque, pela fotografia, a autora parecia uma daquelas senhoras que escreve histórias dramáticas com muito choradinho à mistura. Fico contente por ter ultrapassado essa indecisão porque, decididamente, Margaret Atwood está muito longe de ser uma "velhinha convencional" e, se A História de uma Serva já me tinha convencido, depois de ler O Coração é o Último a Morrer fiquei completamente rendida.
Se os restantes livros dela forem tão bons como estes dois, então Margaret Atwood poderá vir a tornar-se numa das minhas escritoras favoritas. Principalmente se tivermos em conta que, tal como eu, parece ter uma predilecção por cenários distópicos.
O Coração é o Último a Morrer remete-nos para a crise do subprime de 2007.
« (...) todo o castelo de cartas, todo o sistema ruíra, milhares de milhões de dólares eliminados das folhas de cálculo como nevoeiro de uma janela. Na televisão, hordas de peritos de meia-tigela tentavam explicar por que razão aquilo acontecera - demografia, perda de confiança, gigantescas operações fraudulentas -, mas tudo isto não passava de suposições da treta. Alguém mentira, alguém defraudara, alguém minara o mercado, alguém inflacionara a moeda.»
« (...) todo o castelo de cartas, todo o sistema ruíra, milhares de milhões de dólares eliminados das folhas de cálculo como nevoeiro de uma janela. Na televisão, hordas de peritos de meia-tigela tentavam explicar por que razão aquilo acontecera - demografia, perda de confiança, gigantescas operações fraudulentas -, mas tudo isto não passava de suposições da treta. Alguém mentira, alguém defraudara, alguém minara o mercado, alguém inflacionara a moeda.»
O Coração é o Último a Morrer (pg.20)
Stan e Charmaine, que antes da crise tinham uma vida financeira e profissional estável e estruturada, ela enquanto assistente na Clínica e Casa de Repouso Ruby Slippers, e ele enquanto assistente de controlo de qualidade na Dimple Robotics, acabam a viver dentro do carro, condenados « a uma vida errante frenética, cheia de poeira nos olhos e de sovacos a cheirar a ranço ». Contudo, uma luz parece surgir ao fundo do túnel quando Charmaine vê o anúncio televisivo ao Projecto Positrão.
« No Projecto Positrão, na cidade de Consiliência, as coisas podem voltar a ser como eram. Oferecemos não apenas emprego, mas também protecção contra os elementos perigosos que actualmente atormentam tanta gente. Trabalhe com pessoas com ideias semelhantes às suas! Ajude a resolver os problemas da nação, o desemprego e a criminalidade, ao mesmo tempo que resolve os seus!»
O Coração é o Último a Morrer (pg.42)
Creio que será seguro dizer que qualquer um de nós ficaria, no mínimo, intrigado com este projecto. Afinal de contas, as diferenças entre a vida fora de Consiliência e as promessas da vida dentro são bastante significativas...
« (...) a vida fora dos portões de Consiliência é um monte de sucata em deterioração. As pessoas morrem de fome. Esgravatam à procura de comida, roubam, vasculham os contentores de lixo.»
O Coração é o Último a Morrer (pg.50)
« A cidade gémea Consiliência/Positrão é uma experiência. Uma experiência ultraimportante (...). Se for bem sucedida, e tem de ser bem sucedida, e só poderá sê-lo se trabalharem todos em conjunto, poderá ser a salvação (...). Desemprego e criminalidade resolvidos de uma assentada, com uma vida nova para todos os envolvidos.»
O Coração é o Último a Morrer (pg.54)
Imaginem então que perderam tudo o que têm e que actualmente moram dentro do carro. Alimentam-se de donuts duros e café que fazem na chaleira que ligam ao isqueiro do carro. Tomar banho é um luxo que não podem ter e não são raras as noites em que têm de mudar de um parque de estacionamento para outro porque se vêem rodeados de pessoas com intenções duvidosas mas com expressões nada duvidosas quanto às suas intenções. De repente, tudo isso parece poder ficar para trás. Para tal, basta que se juntem ao Projecto Positrão cujo slogan parece até apelativo.
CONSILIÊNCIA = CONS + RESILIÊNCIA
CUMPRA PENA AGORA, COMPRE TEMPO PARA O NOSSO FUTURO
« (...) em resumo, toda a gente em Consiliência viverá duas vidas: prisioneiros num mês, guardas ou funcionários da cidade no mês seguinte. Toda a gente tem um Alternante. Por conseguinte, uma residência pode servir para, pelo menos, quatro pessoas: no Mês Um, as casas serão ocupadas pelos civis, no Mês Dois, pelos prisioneiros do Mês Um, que assumirão os papéis civis e se mudarão para as habitações. E as coisas passar-se-ão assim, mês após mês, sempre a rodar.»
O Coração é o Último a Morrer (pg.60)
Afinal de contas, mesmo no mês em que estarão da prisão não estarão realmente presos. A comida, tanto quanto sabem, é excelente. E as tarefas que vos são atribuídas não são propriamente trabalhos forçados mas sim, algo em prol da comunidade. O que é que poderia correr mal ?
Bom, pelos vistos muita coisa pode e vai correr mal.
Coisas que nem vos passarão pela cabeça quando começarem a ler o livro!
Comecemos pelo título: O Coração é o Último a Morrer.
Uma pessoa mais desprevenida poderia julgar tratar-se de uma história de amor.
O título pode ser enganador.
Erradamente, podemos ficar a pensar que se trata de uma 💗história de amor💗 mas, estamos a falar da Margaret Atwood... Por isso, embora haja realmente uma história de amor como pano de fundo, o livro entra por caminhos que eu diria serem, no mínimo, bizarros.
Nada é o que parece ser, ou talvez tudo seja exactamente aquilo que parece.
Seja como for, provavelmente vão começar a desconfiar de tudo e de todos porque, a partir de determinado ponto da leitura, a trama torna-se de tal forma intrincada, que temos planos, dentro de planos, dentro de planos ... e ficamos sem saber quais são as reais intenções dos envolvidos.
De qualquer modo, apesar de todo este cenário não ser propriamente friendly (afinal de contas, estamos do meio de uma crise financeira e os protagonistas tiveram de integrar um projecto duvidoso para poder recuperar alguma da qualidade de vida), prende-nos de imediato, sobretudo porque nos é dado a conhecer como era a vida de Stan e Charmaine antes do colapso financeiro, e aquilo em que se tornou depois da ruína do sistema. E, tal como vem sendo hábito nos livros de Margaret Atwood, o que é verdadeiramente assustador é a ideia sempre presente de que a ficção não difere muito da realidade e que, qualquer um de nós pode um dia vir a ser um Stan ou uma Charmaine...
Esta fragilidade, e talvez o facto de nos apercebermos que qualquer um de nós pode ficar em situação idêntica, gera de imediato alguma empatia e leva-nos a questionar se a nossa decisão teria sido diferente. Aliás, conforme o livro avança, e vamos descobrindo o que está por trás do Projecto Positrão, torna-se claro que a autora pretende explorar a fragilidade humana. Aliás, explorar de que modo é que a fragilidade humana, e talvez o nosso apego a um determinado nível de qualidade de vida, pode condicionar aqueles que são os limites do que consideramos aceitável.
« Os mais picuinhas poderão não considerar o referido tratamento estritamente legal, mas situações extremas exigem uma certa elasticidade das regras, como ele está certo que todos compreendem.»
O Coração é o Último a Morrer (pg. 152)
O mais brilhante neste livro é que, apesar desta vertente, digamos, de reflexão, não estamos perante uma leitura enfadonha. Muito pelo contrário. O Projecto, que ao início parece ser realmente uma luz ao fundo do túnel e uma solução para os problemas da nação, começa a revelar-se um pouco mais obscuro do que a ideia que vendia mas ... quão obscuro tem de ser para ser considerado um mau projecto ? Qual é o limite até onde as pessoas estão dispostas a ir, se em troca receberem aquilo que querem ?
« Quando o novo nome e a nova estratégia foram lançados, o Positrão tocou num ponto sensível das pessoas. Um estratagema credível, disseram os bloguistas da informação. Finalmente, uma visão! Até os depressivos dentre eles afirmaram que valia a pena tentar, já que mais nada tinha resultado. As pessoas estavam sedentas de esperança, prontas a engolir o que quer que fosse vagamente animador.»
O Coração é o Último a Morrer (pg. 59)
Pessoalmente, gostei bastante deste livro que entra para a minha lista de favoritos de 2018. Não só por ser um livro que me prendeu da primeira até à última página, como também por ser um daqueles que me deixou a pensar acerca dele, mesmo semanas depois de o ter terminado. E, claro, pela qualidade da escrita que, já me tinha seduzido em A História de Uma Serva. Se forem pesquisar, provavelmente irão encontrar leitores para quem o estilo de Margaret Atwood é o motivo pelo qual não gostam das obras dela mas, para mim, foi precisamente o contrário.
Mas, nada como lerem e depois partilharem a vossa opinião nos comentários!
Poderão também gostar de:
📖 A História de Uma Serva
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