O Poder (2016) de Naomi Alderman

by - novembro 02, 2018

★★★★☆
Sinopse: 
E se, um dia, as raparigas ganhassem subitamente o estranho poder de infligir dor excruciante e morte ? De magoar, torturar e matar ? Quando o mundo se depara com esse estranho fenómeno, a sociedade tal como a conhecemos desmorona e os papéis são invertidos. Ser mulher torna-se sinónimo de poder e força, ao psso que os homens passam a ter medo de andar na rua, sozinhos à noite.

Ao narra as histórias de várias protagonistas, de múltiplas origens e estatutos diferentes, Naomi Alderman constrói um romance extraordinário que explora os efeitos devastadores desta reviravolta da natureza, o seu impacto na sociedade e a forma como expõe as desigualdades do mundo contemporâneo.




Opinião: Normalmente, quando aparece aí um livro que se revela um sucesso, as livrarias não tardam em encher as prateleiras de outros livros semelhantes que, garantem eles, vão agradar a todos aqueles que gostaram do primeiro.

Lembram-se do sucesso em volta da trilogia Millenium e da quantidade de outros livros que apareceram depois e que garantiam ser os sucessores da obra de Stieg Larsson ? O lado positivo foi que isso ajudou bastante a divulgar os policiais nórdicos mas, por outro lado, não achei que a maioria dos supostos sucessores estivesse ao nível de Larsson.

E isto tudo para dizer o quê ?
Para dizer que O Poder também apareceu por aí depois do recente sucesso de A História de Uma Serva, com uma citação de Margaret Atwood na capa e tudo, a dar a entender que a Naomi Alderman vinha com selo de garantia de qualidade. Isto para mim é meio caminho andado para não comprar um livro...

Naomi Alderman e Margaret Atwood

Por outro lado, já me aborrece esta moda (sim, moda) que agora anda aí do empowerment das mulheres. Não me interpretem mal. Acho muito bem que se defendam os direitos das mulheres mas, também acho que há uma grande diferença entre isso e aqueles movimentos dos justiceiros sociais que acham que igualdade de género é sinónimo de subserviência masculina e superioridade feminina. Lamento informar, mas isso não é igualdade. É estupidez. E tenho pouca paciência para coisas estúpidas. Portanto, já devem imaginar que a premissa do livro também me deixou de pé atrás.

Mas, apesar de me parecer que o livro tem sido propagandeado como uma espécie de ode ao poder das mulheres, a forma como o interpretei foi praticamente na direcção oposta.

Vamos lá então.

O Poder é um livro durante o qual iremos acompanhar o percurso de cinco personagens, durante o período compreendido entre o que viria a ficar conhecido como O Dia das Raparigas e o Grande Cataclismo.

A história começa com o despertar do poder em Roxy, na altura apenas com catorze anos, « uma das mais jovens, e uma das primeiras ».

« Roxy sente uma espécie de agulhas a percorrerem-lhe os braços. Como alfinetadas de luz da coluna vertebral à clavícula, do pescoço aos cotovelos, aos pulsos, às pontas dos dedos. Está a cintilar por dentro. »
O Poder


Não tarda até percebermos que não estamos perante um episódio isolado. Muito pelo contrário ...

« Aquilo está a alastrar pelo mundo e ninguém sabe o que raio se passa. No início, apareceram rostos confiantes na televisão, porta-vozes do CDC a dizer que era um vírus, não muito grave, que a maioria das pessoas recuperava bem, e que só parecia haver raparigas a electrocutarem pessoas com as mãos. Todos sabemos que isso é impossível, um disparate - os pivôs das notícias riam-se tanto que estalavam a maquilhagem. »
O Poder

Por esta altura, já sabemos no que é que isto vai dar, não é ?
Bem vistas as coisas, sempre que o CDC e outros tantos especialistas aparecem nos meios de comunicação social a dizerem que "é só um vírus" e que "não há motivos para preocupações", é precisamente quando temos de nos preocupar.

Claro que entretanto vamos assistir ao aparecimento de uma série de teorias sobre a origem do poder, e é curioso ver que são as mesmas teorias que surgem sempre que aparece alguma coisa para a qual não há explicação. De um lado, os que defendem que é uma dádiva que Deus, do outro os que dizem que é coisa do Demónio. No meio, aqueles que não fazem ideia do que se passa mas que, não obstante, fazem questão de dar os seus bitaites.

Viria a ser uma equipa em Deli « a primeira a descobrir a faixa de músculos estriados sobre as clavículas das raparigas, a que deram o nome de órgão de electricidade, ou meada, por causa dos seus fios retorcidos ». Inicialmente, apenas as raparigas mais jovens parecem ter esta meada, ou pelo menos a capacidade para fazer uso dela. Mas, rapidamente se vem a descobrir que « as mulheres mais novas podem despertar o poder nas mais velhas » pelo que, a partir de determinado momento, todas as mulheres o terão.

É aqui que a coisa começa a ficar interessante ... 

O que será que acontece quando as mulheres ganham o poder de causar sofrimento e morte ?

Acontece tudo. 
Menos sofrimento e morte, porque as mulheres são seres moralmente superiores, capazes de pôr os seus interesses pessoais de parte e canalizar todo este poder recém descoberto para o bem da Humanidade e assim alcançar feitos grandiosos que irão beneficiar toda a gente.

Se era disto que estavam à espera, podem passar ao próximo livro porque, decididamente que O Poder não irá ao encontro das vossas expectativas. 

Esta também deve ser a review com mais opiniões pessoais que já escrevi e, fica o aviso: não sou politicamente correcta e às vezes posso roçar a bestialidade (de besta, não de bestial). Por isso, se avançarem, estão por vossa conta e risco.



Recordam-se de, no início, eu ter dito que a minha interpretação ia praticamente na direcção oposta às campanhas que têm sido feitas e que dão a entender que O Poder é uma espécie de elogio às mulheres ? 

Pois bem. Sabemos que actualmente, em muitos lugares do mundo, as mulheres são sujeitas a toda a espécie de violência e privadas de direitos acerca dos quais a maioria de nós nem sequer pensa porque nunca se viu privado deles. Volta sim, volta não, lá surge uma notícia sobre raparigas que foram raptadas da escola e vendidas como escravas sexuais, uma reportagem sobre a mutilação genital feminina ou sobre o desmantelamento de uma rede de tráfico de mulheres. Nessa altura, toda a gente fica muito "chocada" nas redes sociais mas, não tarda a voltarem a enfiar a cabeça na areia e a seguirem com as suas vidas. Afinal de contas, "eu já tenho problemas de sobra" e "o Governo é que tem de tratar disso". As coisas são como são, e a realidade é que maioria de nós não é uma Malala nem uma Nadia Murad.

Mas, a verdade é que essas realidades existem e as mulheres que são vítimas destes regimes patriarcais estão destituídas de todo e qualquer poder. 

Se forem agredidas pelos maridos, não há nada que possam fazer.
Se forem violadas, é porque mereceram.
Se forem infiéis, são apedrejadas e a culpa é delas.

De certa forma, já nos "habituámos" a ouvir falar disto e portanto, assobiamos para o lado. Já o ditado diz que entre marido e mulher não se mete a colher. Mas e se, de repente, todas estas mulheres ganhassem um poder que lhes permitisse libertarem-se ? Exercer vingança sobre aqueles que as maltrataram durante todos estes anos ?

Esse é, precisamente, o ponto de partida deste livro. E não tenho quaisquer dúvidas que vai suscitar opiniões completamente opostas. Mas essa é precisamente a magia de um livro, certo ?



O Poder transporta-nos até locais onde mulheres, subjugadas e maltratadas, descobrem que têm finalmente uma oportunidade para escapar e uma oportunidade para se vingarem.

« Esperam na escuridão. Praticam. Têm de ter a certeza de que conseguirão fazer tudo de uma vez, de que ninguém terá tempo para pegar numa arma. Passam-no de mão em mão, no escuro, e maravilham-se. Algumas delas estão cativas há tanto tempo que nunca tinham ouvido falar naquilo; para as outras, não era mais do que um estranho rumor, uma curiosidade. (...) Um dos encarregados vem desacorrentar a mulher que pensava ir a caminho de Berlim como secretária até a atirarem para um chão de cimento e lhe mostrarem, repetidamente, qual era a sua verdadeira função. Ele traz as chaves na mão. Caem em cima dele todas de uma vez, não lhe permitindo sequer emitir um som, e o sangue jorra-lhe dos olhos e dos ouvidos. »
O Poder (p.106)

Não as podemos recriminar. 
Afinal de contas, se estivéssemos na mesma situação, não faríamos exactamente o mesmo ? 

Mas, à medida que O Poder vai crescendo, vamos assistindo a uma degradação dos ideais das mulheres e à corrupção dos valores que alegavam defender. A determinado ponto do livro, as mulheres tornam-se um espelho de tudo aquilo que diziam combater e parecem ser movidas unicamente pelo desejo de obter mais riqueza e afirmação do poder.

« Não há qualquer sentido no que ali é feito, naquele dia. Não há território a ser conquistado, ou uma ofensa específica a ser vingada, ou sequer soldados a aprisionar. Matam os homens mais velhos em frente dos mais novos, aplicando-lhes as palmas das mãos sobre os rostos e o pescoço, e uma delas exibe o seu talento especial para desenhar efeitos rudimentares sobre a pele com as pontas dos dedos. Muitas delas pegam em alguns homens e usam-nos, ou brincam simplesmente com eles. Dão a um deles a possibilidade de escolher entre ficar com os braços ou com as pernas. Ele escolhe as pernas, mas elas quebram o acordo. Sabem que ninguém se importa com o que se passa ali. Ninguém está ali para proteger aquelas pessoas, e ninguém se preocupa com elas. Os corpos poderão ficar ali, no bosque, durante uma dúzia de anos, sem que alguém se cruze com eles. Fazem-no porque podem.»
O Poder

Este tipo de atrocidades, é uma das muitas a que vamos assistir durante o livro, e achei curioso o facto de ter ficado incomodada com algumas situações porque a vítima era um homem. E dei comigo a pensar: "Espera lá, mas isto também acontece a mulheres! Porque é que é esse espanto todo?". Acabei por chegar à conclusão que a imagem da mulher-vítima está de tal forma banalizada que já não choca. E, a capacidade de conseguir criar esses momentos de reflexão é, na minha opinião, um dos pontos fortes do livro. 
Mas O Poder não fica por aqui na sua capacidade de nos fazer reflectir, e em diversos momentos Naomi Alderman consegue criar uma união perfeita entre a realidade e a ficção.

Em Riade, « o tumulto fora desencadeado pela morte de duas raparigas, com cerca de doze anos. Um tio encontrara-as a praticar juntas as artes do Diabo; sendo um homem religioso, convocara os amigos e as raparigas haviam sido castigadas e, de alguma forma, tinham acabado ambas espancadas até à morte.» 

Numa cave escura, numa cidade rural da Moldávia, um grupo de mulheres amontoa-se em colchões sujos. «A Moldávia é a capital mundial do tráfico humano com fins sexuais. Ali, há um milhar de pequenas cidades com pontos de escala em caves e apartamentos em edifícios marcados para demolição. Também há tráfico de homens e crianças. As crianças do sexo feminino crescem de dia para dia, até que o poder lhes chega às mãos e podem ensiná-lo às mulheres adultas.» 

Temos assim, por um lado, O Poder, que sabemos ser ficção.
E por outro, aquela que é a realidade em muitos locais. 
Aquela que é a realidade para muitas mulheres, neste preciso momento.
É por isso que, embora por vezes sejamos levados pela história, e a autora nos conduza por acontecimentos que sabemos serem pura ficção, de vez em quando somos chamados à realidade. É quase como se alguém nos tocasse no ombro e dissesse "Que giro não é ? Mas ... tens noção que há mesmo mulheres presas em caves e forçadas a prostituírem-se ? Que provavelmente vão morrer lá e os corpos atirados para uma valeta qualquer ? E o pior é que ninguém vai querer saber. E quem faz isso, fá-lo, porque pode." 


Mas, qual será a relação entre o género e a vitimização ?
Será que todos os homens são maus, apenas por serem homens e todas as mulheres são vítimas, apenas por serem mulheres ?

E é aqui que a minha interpretação do livro começa a divergir da opinião generalizada visto que rapidamente chegamos à conclusão que também as mulheres, quando munidas de um tal poder, são capazes de tudo, usando praticamente o mesmo tipo de argumentação que alguns homens usam para legitimar os seus actos.

« O tema é: de quantos homens precisamos realmente ? Pensem nisso, dizem. Os homens são perigosos. Os homens cometem a grande maioria dos crimes. Os homens são menos inteligentes, menos diligentes, menos trabalhadores, têm o cérebro nos músculos e nas pilas. Os homens estão mais sujeitos a doenças e esgotam os recursos do país. Claro que precisamos deles para termos bebés, mas quantos são precisos para isso ? Não tantos como as mulheres. Claro que haverá sempre lugar para homens bons, limpos e obedientes. Mas quantos são esses ? Talvez um em cada dez. »

No universo deste livro, onde as mulheres têm O Poder, os homens passam então a ser vistos como dispensáveis e sujeitos a actos de crueldade. Será legítimo aplicar estes castigos de forma indiscriminada ? Será que todos os homens têm de ser castigados por actos que apenas alguns cometeram ? Isso fica ao juízo de cada leitor.

Haverá certamente quem considere que todas as crueldades cometidas pelas mulheres ao longo do livro foram totalmente legítimas e que os homens mereceram. Na minha opinião, pareceu-me que a autora quis precisamente mostrar que não se trata de uma questão de género, mas sim que homens e mulheres podem ser igualmente cruéis, dependendo do contexto onde se inserem e se as condições o permitirem. 

Claro que também é possível ler o livro e deixar as considerações filosóficas completamente de parte. Como costumo dizer, há livros que têm apenas uma história e outros que têm uma história e uma mensagem. O Poder insere-se na segunda categoria mas, pode também ser lido como uma simples história de mulheres que dão choques eléctricos e que decidem governar o mundo para ver no que é que dá.

Por isso, se gostam de distopias, O Poder será uma boa aposta e, sim, pareceu-me que quem gosta de Margaret Atwood é bem capaz de se deixar convencer pela Naomi Alderman (ainda que, pessoalmente, goste mais do estilo da Atwood), sobretudo porque, no campo das distopias, ela traz algo que é a primeira vez que encontro no género, ou seja, em vez de entrarmos logo numa sociedade totalitária marcada pelo autoritarismo, vamos acompanhar o percurso feito da realidade como a conhecemos até chegar a esse ponto.

Poderão gostar de:
📖 A História de Uma Serva - Margaret Atwood
📖 O Coração é o Último a Morrer - Margaret Atwood
📖 O Ano do Dilúvio - Margaret Atwood

Adaptação para televisão
📺 The Handmaid's Tale






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