O Homem Duplo (1977) de Philip K.Dick - Coleçcão Argonauta n.º 316

by - dezembro 14, 2018

★★★★☆
Sinopse: 
A substância D (D=Death/Morte) é a droga mais perigosa à venda nas ruas de Los Angeles. Bob Arctor, um agente à paisana do departamento de narcotráfico, tenta encontrar pistas que o levem à origem do fornecimento mas, para se fazer passar por um viciado, tem primeiro de se tornar utilizador...


Opinião: 
O Homem Duplo estava na minha lista de próximas leituras praticamente desde Janeiro de 2018. Infelizmente, foi um daqueles que nunca encontrei em promoção e acabei por ir adiando a leitura. Mas, como quem espera sempre alcança, em Novembro consegui comprá-lo por 0.63 cêntimos na MBooks do Cais do Sodré. Não sei que tipo de feitiçaria é que eles fazem por lá para conseguirem ter os livros a este preço, mas a verdade é que não me interessa: A MBooks do Cais do Sobré tornou-se a minha Meca dos dias de folga!

O primeiro livro que li de Philip K.Dick (06/12/1928 - 02/03/1982) foi Depois da Bomba (ler opinião Depois da Bomba @UmBlogueSobreLivros) e devo confessar que não gostei particularmente. Ainda assim, decidi arriscar ler O Homem Duplo e ainda bem que o fiz porque ainda o estou a digerir.


O homem duploO homem duploO homem duplo 

O Homem Duplopublicado originalmente em 1977 com o título A Scanner Darkly, deu origem, em 2006, a um filme de animação com o mesmo título, e com um elenco composto por actores como Keanu Reeves, Woody Harrelson, Robert Downey Jr. e Winona Ryder.


O Homem Duplo

Pessoalmente, achei que existiam algumas semelhanças entre O Homem Duplo e dois livros de Irvine Welsh, Trainspotting e Filth. Com o primeiro, por causa do ambiente psicadélico e das relações existentes entre as personagens. Com o segundo, por causa da investigação policial envolvendo um polícia com hábitos questionáveis.

Mas, se considerarmos que os livros de Welsh foram publicados nos anos 90, e o de Philip K.Dick nos anos 70, certamente que não terão sido eles a sua fonte de inspiração (a não ser que o tipo conseguisse ter realmente visões do futuro, como se diz por aí). A realidade é que a fonte de inspiração foi um período da sua própria vida, sendo O Homem Duplo considerado um livro semi auto-biográfico baseado no período de 1970-1972, depois da quarta esposa, Nancy Hacket, o ter deixado. Philip K.Dick decidiu então converter a casa, com quatro quartos e duas casas de banho, numa espécie de open house que abrigava uma ecléctica colecção de « speed-freaks, dope-heads,junkies and dealers » (fonte: The Guardian) nos quais as personagens do livro foram baseadas.

o homem duplo
A Scanner Darkly (2016)

A história passa-se em 1994, em Orange County (Califórnia), e portanto, aquilo que vamos ter em O Homem Duplo é uma narrativa situada nos anos 90 mas vista numa perspectiva dos anos 70.

A personagem principal, o nosso homem duplo, é um agente da brigada de narcóticos, cuja missão consiste em descobrir a origem do fornecimento da Substância D que « ao contrário das outras drogas, tinha - aparentemente - só uma fonte. Era sintética e não orgânica; portanto vinda de um laboratório.»

Para  cumprir a sua missão, o agente Fred irá infiltrar-se da comunidade de utilizadores, adoptar o nome Bob Arctor e acabar por partilhar a casa com dois outros consumidores: Jim Barris e Ernie Luckman. Mas, como o facto de não utilizar drogas poderia levantar suspeitas e pôr em causa a sua missão, Fred/Bob começa a consumir, entre outros, a tal Substância D « que significa Desespero, Deserção, Disparate, o afastamento dos nossos amigos, o nosso afastamento deles, a solidão, o ódio, a suspeita em relação a cada um. D. Por fim a morte, a morte lenta (...). Morte lenta. Da cabeça para baixo. »

A Scanner Darkly (2016)

Ora, um dos efeitos desta droga, é criar uma espécie de transtorno dissociativo da personalidade, em que o indivíduo acaba por desenvolver duas personalidades distintas, sem que nenhuma delas esteja ciente da existência da outra. E o que acontece em 
O Homem Duplo é que Fred (agente dos narcóticos)/Bob (consumidor) acabam por se tornar duas personagens diferentes, ainda que continuem a ser a mesma pessoa.

Tudo claro até aqui ?
Vamos então complicar um bocadinho...

Os agentes que trabalham no terreno, como Fred, estão sujeitos a um grande risco « porque as forças da droga, como sabemos, infiltraram com fantástica habilidade as várias forças da lei através da nação » e então, de modo a protegerem a sua verdadeira identidade, utilizam os chamados fatos confusores sempre que se reúnem com a chefia ou com outros colegas.

O homem duplo
Fred/Bob Arctor a usar o faro confusor | A Scanner Darkly (2016)

Portanto, se Fred utiliza o fato sempre que está com o chefe ou com os colegas, ninguém conhece a sua verdadeira aparência. Logo, quando vêem as imagens de vigilância da casa onde Fred está infiltrado, não têm como saber qual deles é. A única pessoa que sabe que Fred e Bob são a mesma pessoa, é o próprio Fred.

« Bob Arctor pensou: Quantos Bob Arctor haverá? Que pensamento lixado. Dois que eu saiba. O que se chama Fred e que vigia o outro chamado Bob. A mesma pessoa. Mas será? Será Fred realmente a mesma pessoa que Bob? Alguém sabe disso? Devia sabê-lo  porque sou a única pessoa no mundo que sabe que Fred é Bob. Mas quem sou eu? Qual deles sou eu?

A trama adensa-se porque como vimos, o consumo da Substância D provoca « a separação dos hemisférios, cria duas esferas independentes de consciência dentro de um só crânio, isto é, dentro de um único organismo » e, por esta altura já devem ter adivinhado o que vai acontecer: a determinado ponto do livro, Fred (agente dos narcóticos) estará a vigiar-se a si mesmo, não se reconhecendo como Bob Arctor (consumidor).

o homem duploo homem duploo homem duplo

Esta divisão da personalidade é um dos temas centrais do livro e, realmente, um conceito bastante interessante mas, na minha opinião, considerando que é um livro semi autobiográfico, fiquei com a ideia que o autor pretendia passar algum tipo de mensagem.

No final da edição que li, existe uma nota de Philip K.Dick em que dedica o livro às pessoas « que foram punidas demasiadamente pelo que fizeram », referindo-se aqui aos tais « speed-freaks, dope-heads,junkies and dealers » (fonte: The Guardian) com quem partilhou a casa e que serviram de inspiração para as personagens. A determinado ponto, escreve o seguinte:

« O abuso das drogas não é uma doença, é uma decisão, como a de se colocar em frente de um carro em movimento. Não se deve chamar a isso uma doença, mas sim um erro de julgamento. Quando um grupo de pessoas começa a fazê-lo, é um erro social, um estilo de vida. Neste estilo particular de vida a divisa é: "Sê feliz porque amanhã estás a morrer." Mas o morrer começa quase imediatamente e a felicidade é uma memória.»


o homem duplo

Ao longo do livro, percebemos que existem dois tipos de pessoas: os « direitinhos, nos seus fatos inchados, as gravatas inchadas, os sapatos inchados », que viviam « nos seus enormes e fortificados apartamentos, com os seus guardas prontos a atirar sobre todo e qualquer drogado que escalasse o muro » e os viciados que, na sua maioria « não sabem onde estão a meter-se ou mesmo se estão a meter-se em alguma coisa ».

O próprio Fred (tal como Philip K.Dick) chegou a ser aquilo que se poderia chamar de "direitinho".
Uma esposa.
Duas filhas.
Uma casa com quintal.
Uma máquina de fazer pipocas.

Até que um dia se apercebeu que odiava tudo aquilo, « a mulher, as filhas, a casa inteira, o quintal com o cortador automático de relva, a garagem, o sistema de aquecimento radiante, o jardim da frente, a cerca, aquele maldito lugar e toda a gente nele » e decidiu trocar essa vida, por uma outra muito mais sombria onde « não podia contar com nada ». 

E aquilo a que vamos assistindo neste livro é precisamente este contraste entre os direitinhos e os viciados, sendo o Fred/Bob o melhor exemplo. Pessoalmente fiquei com a impressão de que este contraste tinha dois objectivos. 

Por um lado, o conflito interno entre viver uma vida estável e segura, em que o preço a pagar é uma vida sem excitação nem aventura; ou enveredar por uma vida mais sombria, em que a estabilidade não existe mas, em contrapartida, coisas medonhas e surpreendentes podem acontecer de vez em quando.

Por outro lado, o facto de a sociedade, composta maioritariamente por "direitinhos" respeitar este estilo de vida mas não aceitar um estilo de vida diferente, classificando-a automaticamente como doença e procurando assim curá-la, em vez de a ver uma « um erro de julgamento ».

Na minha opinião, estas deverão ser as ideias que mais se baseiam nas experiências pessoais de Philip K.Dick visto que, durante os anos em que a sua casa de tornou numa open house teve realmente oportunidade de conviver com muitos viciados e conhecer um mundo completamente diferente daquele a que estava habituado enquanto "direitinho".

o homem duplo

Outro aspecto de que também gostei bastante, foram as personagens.
Já sabemos que Fred/Bob Arctor (agente narcóticos/viciado) desempenha um papel principal, sendo ele O Homem Duplo que dá título ao livro. Com ele, partilham casa Jim Barris e Ernie Luckman, e juntos, irão proporcionar alguns dos momentos mais hilariantes do livro, como um episódio em que "descobrem" que foram enganados na compra de uma bicicleta que supostamente teria 18 velocidades mas que, afinal de contas, teria 9 (ou seriam 8 ?) porque os tipos que a venderam teriam desmontado as mudanças de modo a retirar algumas delas de modo a obrigá-los a voltar lá.


Por último, e pelo que tenho tido oportunidade de ler, é uma das características dos livros de Philip K.Dick (pessoalmente ainda não sei ao certo porque este é apenas o segundo livro dele que leio), o twist final.

Normalmente quando vemos um filme, já sabemos como é que vai acabar, certo? Há aquela personagem principal, e sabemos de antemão que, por muitas desgraças que aconteçam, ela nunca morre (ou se morrer aparece depois de forma milagrosa no final, porque afinal não estava bem morta). Depois temos aqueles filmes que acabam mal, como o Mother! ou o  Requiem for a Dream, de Darren Aronofsky, e saímos da sala de cinema com um nó no estômago e ficamos a pensar no filme durante dias e dias.



Eu diria que O Homem Duplo se insere na segunda categoria, com o factor adicional de permitir múltiplas interpretações, dependendo se são pessoas que gostam de finais felizes ou não. Para mim, esse é um grande bónus em qualquer livro que leia ou filme que veja: não ter um final óbvio e não existir uma conclusão certa ou errada. Todas as interpretações são válidas, o que acaba por tornar O Homem Duplo num daqueles livros que suscita debates acesos entre os seus leitores.

Para mim, a flor era apenas uma flor para mostrar aos amigos.

a scanner darkly
A Scanner Darkly (2016)

Classificação UmBlogueSobreLivros: ★★★★☆

Adaptação para cinema/televisão:
📺 A Scanner Darkly (2006)

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💻 A Scanner Darkly @T-Rex Space Station 

Se quiserem explorar mais sobre a vida de Philip K.Dick:
💻 Documentário The Worlds of Philip K.Dick
💻 Documentário Philip K.Dick - A Day in The Afterlife

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