Depois da Bomba (1965) de Philip K.Dick - Colecção Argonauta n.º 309
★★☆☆☆
Sinopse: Depois da Bomba é a versão em língua portuguesa de Dr.Bloodmoney Or How We Get Along After de Bomb. Considerada uma obra prima pós-holocausto nuclear, dela fazem parte uma série das mais memoráveis personagens de Philip K.Dick: Hoppy Harrington, um mutante deformado com poderes telecinéticos; Walt Dangerfield, um DJ displicente encalhado num satélite que anda à volta do globo; Dr. Bluthgeld, o físico megalomaníaco amplamente responsável pelo estado dizimado do mundo; e Stuart McConchie e Bonny Keller, duas pessoas não dignas de nota empenhadas na sobrevivência da bondade num mundo devastado pelo mal. Épico e sedutor, este romance brilhante é um representação hipnotizante da esperança imortal de Dick na humanidade. [Fonte: www.goodreads.com]
Opinião:
O que é que os filmes Blade Runner, Desafio Total, Relatório Minoritário e Os Agentes do Destino têm em comum ? O facto de, todos eles, serem baseados em livros o mesmo autor: Philip K.Dick.
O que é que os filmes Blade Runner, Desafio Total, Relatório Minoritário e Os Agentes do Destino têm em comum ? O facto de, todos eles, serem baseados em livros o mesmo autor: Philip K.Dick.
Este autor, que viria a ser considerado uma das referências dentro do género literário da ficção científica, publicou o seu primeiro livro, Solar Lottery, em 1955, mas foi apenas sete livros e oito anos depois, com The Man on The High Castle a ganhar o Hugo Award, que obteve algum reconhecimento.
Estávamos então nos anos 50-60, marcados pela Guerra Fria e pela ameaça sempre presente de um armageddon nuclear. Neste contexto, não será de estranhar que nos seus livros, Philip K.Dick explore muitas vezes temas sociais e políticos, pondo a descoberto e explorando o medo que ensombrava a população.
Acredito que para nós, actualmente, seja difícil compreendermos a profundidade do medo em que estas pessoas viviam. Podemos tentar, podemos até ter uma vaga ideia mas, muito dificilmente saberemos realmente qual a sensação. Sim, de vez em quando, quando o Trump publica um dos seus tweets, lá se começa com a história do "Salve-se quem puder! Vem aí a 3.ª Guerra Mundial". Os activistas de sofá lá regurgitam umas opiniões no facebook mas pouco depois está tudo a assobiar para o lado e a pensar na próxima grande batalha a travar.
Tentem no entanto imaginar como será viver sob a constante ameaça de um ataque.
Nas ruas, placas que apontam para o abrigo nuclear mais próximo.
Nas escolas, simulacros de raides aéreos.
Nas notícias, artigos sobre as probabilidades de sobreviver a um ataque nuclear.
Podem até tentar abstrair-se de tudo isto mas, lá no fundo, sabem que a ameaça existe e não têm como prever quando nem onde se vai concretizar.
O interessante no trabalho de Philip K.Dick é precisamente o facto de ele pegar nesse medo, paranóia e incerteza e transformá-los em algo irrealista mas, ao mesmo tempo, assustadoramente verossímil.
É o que acontece neste número 309 da Colecção Argonauta, intitulado Depois da Bomba e nomeado para o Nebula Award em 1965. Pessoalmente achei que se perdeu um pouco com a tradução do título que, no original, é Dr.Bloodmoney, or How We Got Along After the Bomb (uma tradução à letra seria qualquer coisa como Dr.Bloodmoney, ou Como Nos Demos Depois da Bomba) e que me parece expressar melhor aquilo de que o livro trata.
O ano é o de 1981.
O local, a cidade de Berkeley, na Califórnia.
Fotografia de UmBlogueSobreLivros (2018)
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Stuart McConchie, um vendedor da Modern TV Sales varre o passeio, enquanto observa as pessoas que passam. Do outro lado da rua, « um homem vestido de negro, com cabelos negros e olhos negros, a pele pálida, bem aconchegado num grande sobretudo também da cor da noite cerrada, parou para acender um cigarro e olhar em volta » e entrar furtivamente no consultório do psiquiatra Dr.Stockstill.
« "Eu conheço este homem", disse ele a si próprio. "Já via a sua fotografia ou ele entrou alguma vez na loja. Ou é um freguês... antigo, talvez um amigo de Fergesson... ou é uma celebridade importante" »
O homem furtivo é o Dr. Bruno Bluthgeld ou, Dr. Bloodmoney, o indivíduo que em 1972 liderara em projecto que tinha por objectivo testar armas nucleares como medida de protecção contra a China e a União Soviética mas, cujo erro de cálculo, teve consequências desastrosas...
« (...) muitas pessoas, tanto por aqui como no leste, gostariam de pôr as mãos nele por causa do seu erro de cálculo de 1972. Por causa da terrível precipitação radioactiva resultante da explosão a grande altitude que não se supunha fizesse mal algum, pois os cálculos de Bluthgeld assim o tinham provado com antecedência.»
Ciente de que « há milhares, mesmo milhões de pessoas no mundo que me odeiam e que gostariam de me destruir », o Dr. Bruno Bluthgeld acaba por adoptar um nome falso, Mr. Tree, e por se tornar paranóico, acreditando existirem perseguidores que planeiam matá-lo.
Entretanto, do outro lado da rua, transeuntes e funcionários da Modern TV Sales, entre os quais « um tipo sem pernas nem braços que anda por aí num carrinho » chamado Hoppy Harrington, juntam-se para assistir em directo ao voo dos Dangerfield, naquela que seria a primeira fase de uma missão de colonização a Marte.
É então que, da cave, surge um dos técnicos da Modern TV a gritar « Alerta Vermelho! ». Por todo o lado, as bombas começam a cair e Bruno Bluthgeld convence-se ter sido ele, uma vez mais, o causador desta destruição.
« O que aconteceu foi que eles estavam a preparar-se para me destruirem, mas não tinham contado com a minha capacidade, que parece residir parcialmente no subconsciente (...). Não tomaram em conta a potência quase ilimitada da minha energia psíquica reactiva, e agora ela flui de novo para eles em resposta aos seus planos. »
Avançamos para 1988.
Estamos no cenário catastrófico de um pós-holocausto nuclear que, para além de ter provocado a morte a milhões de pessoas, causou também a destruição de grande parte da tecnologia existente antes do bombardeamento. Outro dos efeitos das bombas, foi o facto de ter provocado várias mutações, tanto em animais como pessoas...Os focomelos são agora cada vez mais comuns, os esquilos tornaram-se extremamente agressivos, os ratos desenvolveram capacidades que lhes permite destruir as ratoeiras e há até um cão que consegue articular algumas palavras. É neste contexto, e inserido anonimamente numa comunidade situada em West Marin, que vamos encontrar o Dr. Bloodmoney a viver de forma incógnita, com o nome de Jack Tree. Será precisamente esta comunidade o ponto de convergência de algumas personagens que conhecemos antes do ataque, e de outras que entretanto a elas se vão juntar. Será também aqui, que vamos começar a perceber de que modo a destruição de tudo quanto conhecem, faz emergir características que desconheciam.
Eu sei que Philip K.Dick é considerado um visionário e um dos grandes nomes da ficção científica mas, não posso dizer que tenha gostado especialmente deste livro. Curiosamente, a razão pela qual não gostei é a mesma pela qual outras pessoas gostaram: há alturas em que não se percebe que raio se passa.
Essa incerteza está presente durante praticamente todo o livro, e pelo que tenho lido é uma das características não só daquilo que ele escrevia mas também da forma como via o mundo. Para Philip K.Dick nada era tido como garantido... Uma mesa é uma mesa neste minuto mas, nada garante que no minuto seguinte continue a ser uma mesa.
Em Depois da Bomba, essa incerteza acaba por funcionar de duas formas.
Por um lado, torna o livro um pouco confuso, e há situações em que fiquei sem saber se aquilo estava realmente a acontecer ou se era tudo na imaginação da personagem.
Veja-se por exemplo o caso do Dr. Bloodmoney.
Há leitores que acham que ele tem realmente a capacidade de causar destruição com o pensamento ou lá o que é. Há outros que acham que tudo não passa de uma coincidência. Outros, que não sabem se é uma coisa ou outra.
Por outro lado, o facto de, aqui e ali, irem surgindo detalhes e sendo levantadas suspeitas, foi o que evitou que eu tivesse desistido da leitura a meio. É como se a narrativa tivesse pontos altos e baixos... estamos ali a ler página após página, já entediados, já a pensar "não vale a pena, vou largar este livro" quando, do nada, há uma personagem que diz ou faz qualquer coisa que dá origem a uma série de hipóteses, todas elas bastante interessantes. Dou-vos um exemplo: a determinado ponto, o focomelo Hoppy Harrington, diz que vai construir um novo carro, « um desenho meu, todo electrónico ».
« As ligações são feitas aos centros motores do cérebro, de modo que não há demora; uma pessoa pode mover-se ainda mais rapidamente do que... com uma estrutura fisiológica normal. - Ia a dizer que um humano. - »
"Espera lá!" - pensei eu. - "Queres ver que afinal de contas o focomelo é na verdade um extraterrestre infiltrado; que a história das crianças nascerem sem braços nem pernas por causa do consumo de talidomida por parte das mães era mentira e que na verdade são é aliens infiltrados; que o ataque nuclear não veio dos chineses nem dos russos mas sim dos marcianos como forma de evitar a missão de colonização a Marte ?"
E assim lá ia continuando, página após página ... durante as 248 páginas do livro. Mas foi mais um arrastar ao longo do livro e não propriamente uma literatura entusiástica.
Ainda assim, houve um detalhe que achei bastante interessante e que, na minha opinião, é um exemplo de como, em certos aspectos, a nossa sociedade actual parece estar a regredir: o facto de uma das personagens principais sofrer de uma anomalia congénita, a focomelia.
Reparem, quando o livro saiu, a phocomelia era um problema de grandes dimensões, e até 1962, ano em que talidomida foi banida, nasceram mais de 10.000 crianças com esta malformação, sobretudo na Europa. Depois da Bomba foi publicado dois anos depois.
Deus nos livre de, hoje em dia, alguém se lembrar de escrever um livro a demonizar aquilo que é uma doença séria e incapacitante! Era logo linchado em praça pública, acusado de estar a "fazer pouco" da doença, e que "de certeza que não tem filhos, porque se tivesse não gozava".
E o resto vocês já sabem:
Criavam-se páginas de apoio no facebook, fotografias com #phocolemianaotemgraça #linchemoescritor #olivroeofensivo #soutaojusticeirosocialquedouvomitosamimproprio, jornalistas à porta da casa do escritor a perguntar se não tinha vergonha na cara, debates na televisão com especialistas, e provavelmente até uma daquelas emissões em que as pessoas ligam a dar a opinião. Um circo.
Considerações sobre a actualidade à parte, parece-me que, em Depois da Bomba, Philip K.Dick explorou um dos aspectos que encontramos com bastante frequência em livros com cenários pós apocalípticos:
Entretanto, do outro lado da rua, transeuntes e funcionários da Modern TV Sales, entre os quais « um tipo sem pernas nem braços que anda por aí num carrinho » chamado Hoppy Harrington, juntam-se para assistir em directo ao voo dos Dangerfield, naquela que seria a primeira fase de uma missão de colonização a Marte.
Título: Doctor Blood Money | Autor: Peter Elson |
É então que, da cave, surge um dos técnicos da Modern TV a gritar « Alerta Vermelho! ». Por todo o lado, as bombas começam a cair e Bruno Bluthgeld convence-se ter sido ele, uma vez mais, o causador desta destruição.
« O que aconteceu foi que eles estavam a preparar-se para me destruirem, mas não tinham contado com a minha capacidade, que parece residir parcialmente no subconsciente (...). Não tomaram em conta a potência quase ilimitada da minha energia psíquica reactiva, e agora ela flui de novo para eles em resposta aos seus planos. »
Avançamos para 1988.
Estamos no cenário catastrófico de um pós-holocausto nuclear que, para além de ter provocado a morte a milhões de pessoas, causou também a destruição de grande parte da tecnologia existente antes do bombardeamento. Outro dos efeitos das bombas, foi o facto de ter provocado várias mutações, tanto em animais como pessoas...Os focomelos são agora cada vez mais comuns, os esquilos tornaram-se extremamente agressivos, os ratos desenvolveram capacidades que lhes permite destruir as ratoeiras e há até um cão que consegue articular algumas palavras. É neste contexto, e inserido anonimamente numa comunidade situada em West Marin, que vamos encontrar o Dr. Bloodmoney a viver de forma incógnita, com o nome de Jack Tree. Será precisamente esta comunidade o ponto de convergência de algumas personagens que conhecemos antes do ataque, e de outras que entretanto a elas se vão juntar. Será também aqui, que vamos começar a perceber de que modo a destruição de tudo quanto conhecem, faz emergir características que desconheciam.
Eu sei que Philip K.Dick é considerado um visionário e um dos grandes nomes da ficção científica mas, não posso dizer que tenha gostado especialmente deste livro. Curiosamente, a razão pela qual não gostei é a mesma pela qual outras pessoas gostaram: há alturas em que não se percebe que raio se passa.
Essa incerteza está presente durante praticamente todo o livro, e pelo que tenho lido é uma das características não só daquilo que ele escrevia mas também da forma como via o mundo. Para Philip K.Dick nada era tido como garantido... Uma mesa é uma mesa neste minuto mas, nada garante que no minuto seguinte continue a ser uma mesa.
Em Depois da Bomba, essa incerteza acaba por funcionar de duas formas.
Por um lado, torna o livro um pouco confuso, e há situações em que fiquei sem saber se aquilo estava realmente a acontecer ou se era tudo na imaginação da personagem.
Veja-se por exemplo o caso do Dr. Bloodmoney.
Há leitores que acham que ele tem realmente a capacidade de causar destruição com o pensamento ou lá o que é. Há outros que acham que tudo não passa de uma coincidência. Outros, que não sabem se é uma coisa ou outra.
Por outro lado, o facto de, aqui e ali, irem surgindo detalhes e sendo levantadas suspeitas, foi o que evitou que eu tivesse desistido da leitura a meio. É como se a narrativa tivesse pontos altos e baixos... estamos ali a ler página após página, já entediados, já a pensar "não vale a pena, vou largar este livro" quando, do nada, há uma personagem que diz ou faz qualquer coisa que dá origem a uma série de hipóteses, todas elas bastante interessantes. Dou-vos um exemplo: a determinado ponto, o focomelo Hoppy Harrington, diz que vai construir um novo carro, « um desenho meu, todo electrónico ».
« As ligações são feitas aos centros motores do cérebro, de modo que não há demora; uma pessoa pode mover-se ainda mais rapidamente do que... com uma estrutura fisiológica normal. - Ia a dizer que um humano. - »
"Espera lá!" - pensei eu. - "Queres ver que afinal de contas o focomelo é na verdade um extraterrestre infiltrado; que a história das crianças nascerem sem braços nem pernas por causa do consumo de talidomida por parte das mães era mentira e que na verdade são é aliens infiltrados; que o ataque nuclear não veio dos chineses nem dos russos mas sim dos marcianos como forma de evitar a missão de colonização a Marte ?"
E assim lá ia continuando, página após página ... durante as 248 páginas do livro. Mas foi mais um arrastar ao longo do livro e não propriamente uma literatura entusiástica.
Ainda assim, houve um detalhe que achei bastante interessante e que, na minha opinião, é um exemplo de como, em certos aspectos, a nossa sociedade actual parece estar a regredir: o facto de uma das personagens principais sofrer de uma anomalia congénita, a focomelia.
Reparem, quando o livro saiu, a phocomelia era um problema de grandes dimensões, e até 1962, ano em que talidomida foi banida, nasceram mais de 10.000 crianças com esta malformação, sobretudo na Europa. Depois da Bomba foi publicado dois anos depois.
E o resto vocês já sabem:
Criavam-se páginas de apoio no facebook, fotografias com #phocolemianaotemgraça #linchemoescritor #olivroeofensivo #soutaojusticeirosocialquedouvomitosamimproprio, jornalistas à porta da casa do escritor a perguntar se não tinha vergonha na cara, debates na televisão com especialistas, e provavelmente até uma daquelas emissões em que as pessoas ligam a dar a opinião. Um circo.
Considerações sobre a actualidade à parte, parece-me que, em Depois da Bomba, Philip K.Dick explorou um dos aspectos que encontramos com bastante frequência em livros com cenários pós apocalípticos:
Uma vez destruídas as amarras e as convenções sociais, seríamos nós, num mundo pós apocalíptico, as mesmas pessoas que éramos antes ?
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