Terra de Lobos (2019) de Tünde Farrand

by - agosto 09, 2019

★★★★☆
Sinopse:
Ser proprietário de terrenos fora da cidade é privilégio de uma elite, sendo que a restante população apenas obtém o seu Direito de Residência se o dinheiro que gastar for suficiente para alcançar um dos patamares do estatuto de Consumidor. O envelhecimento foi abolido graças a uma nova e radical abordagem, que substitui a reforma por uma feliz eutanásia num Dignitorium, embora os mais desfavorecidos sejam deixados à sua sorte, longe da vista daqueles que efetivamente contribuem para a sociedade.

Alice é uma Consumidora Média. Depois do desaparecimento de Philip, arrisca-se a perder a casa e o seu estatuto social, começando a pôr em causa a sociedade em que foi criada e que o próprio marido ajudou a construir. Na demanda pelo paradeiro de Philip, ela acaba por descobrir algumas verdades horrendas acerca do que aconteceu à sua família no passado e da crueldade que se esconde por detrás da nova hierarquia social. [Fonte: FARRAND, Tünde. Terra de Lobos. Amadora: Topseller (2019)]


Opinião:
Já vos aconteceu estarem a gostar tanto de um livro que, propositadamente, começam a abrandar o ritmo de leitura para que não acabe tão depressa? Foi precisamente isso que me aconteceu com este livro de Tünde Farrand.

Terra de Lobos foi (mais) uma das compras não planeadas na Feira do Livro deste ano. Porque tenho problemas de auto controlo. Ando sempre a poupar para uma "uma eventualidade" e depois a única eventualidade que aparece chama-se "Livros em Promoção". Bom, antes nisso do que em drogas.



Não conhecia o livro, nem tão pouco a autora, mas quando li a sinopse fiquei com a ideia que seria uma boa aposta e podem crer que foi!

Distópico.
E assustadoramente realista.

A sociedade como nós a conhecemos já não existe. 
No seu lugar surgiu um novo sistema onde são garantidos à maioria da população um padrão de vida extraordinariamente bom e habitação gratuita.

Parece uma evolução bastante positiva, não fosse o detalhe que maioria não é sinónimo de totalidade.

Nesta nova sociedade, onde o consumismo desenfreado é incentivado, e onde aquilo que consumimos dita o lugar que ocupamos na hierarquia social, a maioria das pessoas acredita que o que ditou a falência do anterior sistema foram « as solicitações casa vez maiores colocadas sobre o Estado-Providência pelos mais velhos e pelos doentes que haviam conduzido ao empobrecimento da maioria que trabalhava arduamente » (pg.12).

A solução encontrada passou pela criação de « um sistema novo, mais sustentável » (pg.15) onde as pessoas que não contribuem para a sociedade podem optar por ir para um Dignitorium, onde poderão permanecer por um período máximo que nunca excede um ano, findo o qual se submetem à eutanásia assistida. Aqueles que não se qualificam para o Dignitorium - os condenados, orfãos, portadores de deficiências, desempregados de longa duração e os que não têm poupanças -, « são forçados a retirar-se da sociedade e são descarregados na Zona » (pg.29), « o único lugar que resta onde a vida é miservável e a morte é lenta e não assistida » (pg.38). 



Uma coisa é certa: neste novo sistema não há velhos nem doentes, pois a partir do momento em que deixam de poder trabalhar, deixam de ser considerados um membro útil da sociedade. Como tal, perdem o Direito de Residência, não lhes restando outra solução para além de se sujeitarem a uma morte precoce no Dignitorium ou serem abandonados na zona segregada e abandonada à qual chamam Zona.

Cruel? Sim. 
Eficaz? Também.

A nossa história começa em 2050, e a narradora, Alice, partilha connosco as suas preocupações face a algo que está prestes a fazer: visitar a sua irmã Sofia, uma Proprietária, com quem não fala desde que esta decidiu sair de casa, ainda jovem, deixando apenas uma nota onde escreveu « VOCÊS ESTÃO TODOS MORTOS PARA MIM » (pg.138)Um amor de pessoa como podem imaginar.

O que leva Alice a procurar a irmã é simples: precisa de ajuda. 

O seu marido, Philip, o arquiteto responsável pela conceção do Centro Comercial Paraíso, desaparece no dia da inauguração, e ela desconhece se estará vivo ou morto e desde então que toda a sua vida se começa a desmoronar.

Começa por ser obrigada a mudar-se da casa que partilhava com Philip, para uma casa mais pequena. A habitação, sendo totalmente gratuita, obedece a algumas regras, e uma delas é a de que uma pessoa sozinha tem forçosamente de ficar numa casa mais pequena do que aquela em que ficam os casais. Ainda assim, consegue manter alguma qualidade de vida, visto ser ainda considerada uma Consumidora Média.

Depois, foi o emprego. Alice não consegue superar o vazio deixado por Philip e isso faz com que a sua pontuação no emprego seja cada vez menor, acabado por culminar na sua suspensão durante doze meses. A suspensão implica perda de rendimentos, e portanto Alice tem de se mudar novamente, para um apartamento ainda mais pequeno, situada numa zona de Consumidores Pequenos.

Já diz o ditado: "pimenta no cu dos outros é manteiga". E portanto, só quando Alice começou a sentir na pele o que era ser desprezado pelos outros, é que começou a questionar se aquela sociedade perfeita de que ela tanto gostava, era realmente assim tão perfeita ... E as respostas que vai obter não serão aquelas que gostaria.



Pessoalmente gostei bastante deste livro e das questões éticas e sociais que levanta. Basta uma breve incursão pelo facebook, num dia em que seja publicada alguma notícia sobre o apoio prestado a minorias, para sermos logo bombardeados com comentários a destilar ódio e ignorância. Mas, de todos esses comentários, há aquele... o clássico e eterno ... 


senhoras e senhores ...

[rufar de tambores]


« Eu farto-me de trabalhar e tenho de pagar casa, água, luz, renda. 
Os imigrantes/desempregados/ciganos/refugiados não fazem nenhum e têm direito a tudo! Casa, subsídios, água, luz ... »

Agora imaginem que aparecia aí um programa eleitoral que dizia que as pessoas que não contribuíssem para a sociedade eram todas recambiadas para uma área segregada e abandonada, situada na periferia da cidade e, em contrapartida, todos os que contribuíssem ativamente teriam direito a habitação gratuita.

A julgar pelos comentários xenófobos que vejo por essa internet fora, não tenho a mínima dúvida que alguns aplaudiriam a ideia de pé. Assustador não é ? 

Por outro lado, e talvez o mais assustador no livro foi o facto de que esta sociedade, criada por Tünde Farrand, tem muitos paralelismos com a nossa realidade atual.


They Live (1988) | Realizado por John Carpenter

Tal como no livro, somos categorizados em função daquilo que produzimos.

O Pequeno Consumidor, tal como a Classe Baixa, vive de certa forma segregado. Empurrado para blocos de apartamentos nos limites das cidades, onde as condições por vezes escasseiam, são olhados de lado pelos elementos das classes sociais acima, que os veem como membros pouco produtivos da sociedade embora muitas vezes se vejam forçados a acumular empregos para fazer face a despesas.

O Médio Consumidor, tal como a Classe Média, já consegue ter um apartamento num lugar mais catita e agradável. Eventualmente, uma moradia com um pequeno jardim. Ganha o suficiente para, ocasionalmente, ir jantar fora, ao cabeleireiro, e cometer alguns excessos ponderados.

O Grande Consumidor, tal como a Classe Alta, já têm uma boa qualidade de vida. Boas casas. Bons empregos. Viagens e por aí fora.

Sim, é uma ideia simplista das coisas e há aqui muitas ideias pré-concebidas mas, de uma forma geral, dá para se perceber o paralelismo.

A única diferença é que, na nossa realidade, não há Dignitorium.
Pois não. Na nossa realidade há os lares para idosos que, basicamente - e acredito que em grande parte dos casos -, cumpre a mesma função: é um sítio onde os idosos são postos para morrer.

Podem colocar os unicórnios cor de rosa com purpurinas que quiserem e dizerem que « ah mas eles lá estão melhor » - e sim, há situações em que provavelmente até estarão - mas já conheci casos suficientes para concluir que em muitos casos, ainda o corpo está quente e já os herdeiros andam a vender o recheio da casa. Por isso, Dignitorium ou Lar de Idosos (a escolha da palavra "Lar" é curiosa neste contexto), vai tudo dar ao mesmo.

Esta capacidade para criar uma sociedade fictícia que, na realidade, espelha a sociedade em que vivemos, é um dos aspetos de que mais gostei neste livro. Principalmente porque o efeito da mensagem surge com algum delay. Isto é, durante a leitura, mantemo-nos relativamente afastados da ideia de que aquilo que estamos ler é, em grande medida, real. Podemos achar chocante mas, não deixa de ser ficção. Até que terminamos o livro e ficamos a remoer naquilo que acabámos de ler ... Pessoalmente, acho que é um grande ponto a favor do livro!

E depois temos, claro, o final ...



Fiquei com a sensação que todo o livro vai subindo de intensidade para depois acabar...naquilo. O que foi aquilo?!

Primeiro ficamos a saber que o pai do Philip é um artista renegado que se recusa a integrar a nova sociedade e que gere um campus de renegados na Zona. Durante algum tempo achei que o Philip se tinha juntado a ele e que talvez planeassem alguma coisa em grande. 

Assassinar alguém. 
Pôr uma bomba num centro comercial.
Tomar de assalto um desses edifícios exclusivos dos Grandes Consumidores.

Mesmo depois de ficar a saber que o Philip estava no Dignitorium, acreditei que estava a trabalhar infiltrado e que tinha alguma na manga. Não podia acreditar que um tipo que desde o início do livro nos é apresentado como sendo contra os ideais desta sociedade consumista se tivesse tornado numa anémona conformada. Acreditei até ao fim. Mas parece que afinal se conformou mesmo. E isso ainda é pior do que qualquer das hipóteses que eu tinha levantado.

Muito pior.
Adorei.

Mas só adorei depois de ter pensado um bocado no assunto. Inicialmente fiquei um bocado chateada com este final. Estava como a tipa do ferrero rocher: apetecia-me algo mais. Mas depois pensei no quão pior é uma pessoa simplesmente baixar os braços e desistir. Enquanto ainda se tem sangue na guelra, enquanto ainda se acredita que se consegue mudar alguma coisa, sempre vamos tentando ... mas quando desistimos... Bom, quando desistimos é porque a coisa bateu mesmo no fundo. 

Gostei também da transformação da Alice, que passou de mulher fútil e auto centrada para alguém que desafia os seus valores e crenças para salvar o marido, mesmo depois de ter chegado à conclusão que o Philip que ela conhecia desapareceu e que no lugar dele está apenas aquela concha vazia e conformada. Fiquei no entanto com sérias dúvidas sobre se, depois de passar a Proprietária, vai tentar mudar alguma coisa, apesar de ter levado uma série de pessoas para a propriedade.

Esta parte de levar pessoas para a propriedade também é estranho. Como é que será que ela vai sustentar aquilo a longo prazo? Sim, ela levou meia dúzia de pessoas mas as pessoas vão procriar e a meia dúzia vai torna-se em mais... e mais... e mais... Seria engraçado revisitar aquilo daqui a uns anos e ver no que é que se tornou. Mas, se tivermos em conta a natureza humana, não me parece que vivam todos em feliz harmonia durante muitos e longos anos.



* * * F I M   D E   S P O I L E R S * * * 


O que dizer então sobre Terra de Lobos ?

Foi um livro que li em menos de uma semana por ter sido praticamente impossível pousá-lo. A narrativa, que vai alternando entre o presente e o passado, permite-nos não só ter uma ideia mais abrangente de tudo o que se está a passar - e passou - como fazer com que sintamos que estivemos lá, que acompanhámos aquelas mudanças.

Mas a verdade é que, só mesmo no final, é que vemos o quadro completo. O facto da autora ocultar propositadamente the hole picture leva-nos a que sejamos surpreendidos algumas vezes e que acabemos a ler compulsivamente para descobrir o próximo segredo que aí vem.

Portanto, se procuram uma boa distopia, e quando digo boa, refiro-me àquelas que estão perigosamente próximas da realidade, Terra de Lobos é uma excelente opção! 

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1 comments

  1. Para não variar, adorei ler a tua opinião.
    Gosto da forma nua e crua que expões a nossa realidade. E concordo contigo. É assustador ver o rumo que o nosso mundo está a levar. Se nos guiarmos pelos comentários completamente palermas que vemos nas redes sociais o mundo está perdido.
    E fiquei com tanta vontade de ler o livro!!! Parece tão real!

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