Órix e Crex (2003) de Margaret Atwood

by - dezembro 27, 2020

★★★★☆

Sinopse: Pode ser que os porcos não voem, mas estão completamente alterados. O mesmo se passa com os lobos e outros animais. Um homem - que em tempos se chamou Jimmy - vive numa árvore, embrulhado no seu lençol, e diz chamar-se Homem das Neves. A voz de Órix, a mulher que ele amava, provoca-o e persegue-o. E os Filhos de Crex são agora responsabilidade sua. Como é que o mundo inteiro se desmoronou tão depressa? 

Com a sua habitual agudeza de espírito e o seu humor negro, Margaret Atwood apresenta-nos um mundo novo, habitado por personagens que não nos deixarão nem depois do último capítulo. 

Opinião [contém spoilers]: Quem acompanha o blogue sabe que Margaret Atwood está entre as minhas escritoras favoritas. Aliás, basta irem ao índice de autores para verem que, dos seis livros que li, quatro deles têm ★★★★☆. Considerando que costumo ser esquisita com o que leio, este é um balanço bastante positivo.

Órix e Crex não me era totalmente desconhecido, sobretudo porque faz parte da trilogia distópica Maddadam, da qual já tinha lido O Ano do Dilúvio. Infelizmente, esteve esgotado durante imenso tempo, e não o consegui encontrar nem mesmo em segunda mão. Mas a Bertrand decidiu antecipar o Natal e, em Novembro, lançou uma nova edição que acabou por fazer as delícias dos bookstagrammers. 


O ano é 2050 e a Humanidade foi exterminada por um mortífero vírus cujo avanço foi tão rápido que nem sequer permitiu qualquer tipo de reação. Os Complexos, outrora centros urbanos com cinemas, teatros e casas sofisticadas, estão agora vazios, à exceção dos montes de trapos carcomidos por baixo dos quais se encontram esqueletos igualmente já gastos.

Mas a nossa personagem central não mora num complexo, mas sim para lá da Terra de Ninguém, na costa, onde o céu é limpo e onde na areia da praia se pode muitas vezes encontrar vestígios de um passado esquecido. O seu nome é Homem das Neves, e a sua função é orientar e proteger os crexianos, assegurando que nada de mal lhes acontece. 

As outras duas personagens, que juntamente com o Homem das Neves (a.k.a Jimmy) irão formar um triângulo amoroso, são Órix e Crex. 

Jimmy e Crex conheceram-se na Escola Secundária da SábiaSaúde. Este último tinha sido transferido de outro Complexo, na sequência da transferência dos pais, alvos dos caça-talentos. Embora não tenha sido propriamente uma amizade à primeira vista, Jimmy chegou à conclusão que talvez tivessem mais coisas em comum do que inicialmente pensava, e começaram a passar cada vez mais tempo juntos. 

'' Quando não estavam a jogar, navegavam na net (...). Assistiam a cirurgias de coração aberto em tempo real ou então às Nutícias (...). Ou então entravam em sites de liquidação de animais (...). Também podiam ver o cortacabeças.com que exibia a cobertura ao vivo de execuções na Ásia (...). Ou então podiam ver o alibubu.com, onde eram cortadas as mãos a supostos ladrões e onde as adúlteras e as mulheres que usavam batom eram apedrejadas até à morte. Curtocircuito.com, fritamiolos.com e mortoaovivo.com eram os melhores; exibiam eletrocussões e injeções letais (...). Ou viam programas pornográficos. Desses havia muitos. ''

Foi numa dessas incursões pela Net, mais precisamente ao site MiúdasBoas, uma página de Turismo Sexual, que descobriram Órix, então com cerca de oito anos, ou pelo menos assim parecia. Na altura não se chamava Órix; aliás, não tinha nome. Era apenas uma menina num site pornográfico. Só vários anos mais tarde é que o caminho dos três se voltaria a cruzar, ficando nessa altura claro que o destino ficou traçado logo desde a primeira vez que a viram.

  
Um dos aspetos de que mais gostei em Órix e Crex foi a forma como as histórias se interligam, embora não de forma óbvia. Aquilo que vamos conhecendo acerca do passado, e do percurso que conduziu ao desfecho apocalítico, chega-nos através dos flashbacks do Homem das Neves e, quando chegamos ao final do livro, a sensação que fica é que aquele desfecho era inevitável. 

O domínio dos poderes corporativos são o tema central em alguns dos livros de Atwood, que desta forma nos tenta alertar para os perigos de termos o poder concentrado em apenas algumas mãos. Em Órix e Crex não é diferente, e aqui vamos encontrar corporações que se tornaram tão poderosas, que acabaram a poder reconfigurar onde e como as pessoas vivem, ao criarem complexos gigantescos e fortificados, com cinemas, restaurantes e centros comerciais , para uso exclusivo dos seus funcionários. Todos os outros estavam condenados a viver nas plebelândias, em condições precárias e sem acesso a tudo aquilo que passara a ser considerado exclusivo dos funcionários das Corporações, a nova classe privilegiada.

Um outro tema que aqui podemos encontrar, é o perigo dos avanços científicos, nomeadamente no campo da pesquisa genética. Quem define o limite que não deve ser ultrapassado? E será que, em nome do progresso, tudo é justificável e válido ? Será legítimo criarmos animais geneticamente modificados cujo único propósito é produzir fígados para transplantes ? Ou animais alterados para assegurar a máxima eficiência na produção de carne para alimento ?


Órix e Crex levanta uma série de questões éticas interessantes, mas confesso que aquilo de que mais gostei foi mesmo do estilo de vida completamente bizarro que antecedeu o apocalipse. De repente, é como se tudo fosse perfeitamente normal. 

Assistir a suicídios online? Claro! 
Execuções em tempo real? Boa!
Pornografia infantil acessível de forma livre? Excelente negócio!

É tão estranho... mas ao mesmo tempo, se pensarmos bem, tudo isto está acessível nos dias que correm, se soubermos onde procurar e tivermos vontade de o fazer. A única diferença é que no universo de Órix e Crex tudo isto está normalizado.E provavelmente daqui a uns anos será também essa a nossa realidade. Quem sabe ?

O balanço final é portanto bastante positivo e este foi um daqueles livros que li, como se costuma dizer, "de uma assentada". Gostei das personagens, do universo, das questões que a autora levanta e das questões em que fiquei a matutar mesmo depois de terminada a leitura. Deixo apenas um aviso: se não são fãs de cliffhangers não vão gostar deste final. Se, pelo contrário, gostam de finais em aberto, vão ter muitos cenários em que pensar quando acabarem de ler...

Boas Leituras!

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