Os Testamentos (2019) de Margaret Atwood

by - janeiro 09, 2021

★★★★☆
Sinopse:
A obra prima distópica de Margaret Atwood, A História de Uma Serva, tornou-se um clássico do nosso tempo cuja conclusão conhecemos nesta fascinante sequela.
Quinze anos depois de A História de Uma Serva, o regime teocrático da República de Gileade mantém-se no poder, mas há sinais de que está a começar a ruir por dentro.
Neste momento crucial, os percursos de três mulheres radicalmente diferentes cruzam-se com resultados potencialmente explosivos. Duas cresceram em diferentes territórios, separadas por uma fronteira: uma, a filha privilegiada de um Comandante de alta patente, em Gileade e a outra no Canadá, onde acompanha ativamente os horrores praticados pelo regime do país vizinho. Às vozes destas duas jovens, saídas da primeira geração que cresceu sob uma nova ordem, junta-se a voz de uma terceira, uma mulher que é um dos carrascos do regime de Gileade, cujo poder se baseia nos segredos que foi reunindo sem escrúpulos e que usa de forma cruel. São estes segredos, há muitos enterrados, que irão aproximar estas três mulheres, forçando-as a aceitarem-se e a defenderem as suas convicções mais profundas. 


Opinião [contém spoilers]: Quem leu A História de Uma Serva recordar-se-á que o final deixa algumas questões em aberto e outras tantas sem resposta. Mas, não desesperem! É verdade que passaram 35 anos entre a publicação do primeiro livro e este mas, finalmente, vamos poder satisfazer a curiosidade e encontrar a resposta a algumas questões.

« Como foi que Gileade caiu » e « O que acontece depois » foram, segundo Margaret Atwood, as questões mais frequentemente colocadas pelos leitores. Em Os Testamentos, vamos encontrar não só as respostas, mas também ter uma visão mais abrangente e, ao mesmo tempo, mais detalhada da vida no interior de Gileade e das manobras que conduziram ao final do regime. 

Tal como acontece em A História de Uma Serva, também aqui a narrativa surge na forma de relatos na primeira pessoa. A diferença é que, enquanto que no primeiro livro temos apenas uma personagem central, a serva DeFred, aqui iremos ter três pontos de vista diferentes, de três mulheres oriundas de realidades completamente distintas, e cujo percurso iremos acompanhar ao longo da história. Cada testemunho é designado de forma diferente, permitindo-nos saber a que personagem se refere. 

O « O Hológrafo de Ardua Hall » refere-se ao testemunho da Tia Lydia, uma das Tias Fundadoras, que ocupa um lugar de especial destaque na sociedade de Gileade e que, em A História de Uma Serva é retratada como sendo uma verdadeira vilã. Na prática, é sem dúvida uma mulher que detém bastante poder. Poder esse que resulta, sobretudo, dos escândalos e secretos de que tem conhecimento, e que envolvem a elite de Gileade. Foi, sem dúvida, a minha personagem favorita, especialmente porque a linha que faz dela vilã ou heroína é muito ténue. Gostei na forma como parece estar sempre um passo à frente de tudo e de todos, e a frieza calculista com que leva a cabo os passos necessários para concretizar o seu plano. Outro ponto bastante positivo foi sabermos, através da própria, o caminho que percorreu até chegar a Tia Fundadora. Em A História de Uma Serva conhecemos o histórico de DeFred, e temos assim a perspetiva daquelas que surgem como "vítimas" do regime de Gileade. Em Os Testamentos, teremos a perspetiva de uma das que surgem como "carrascos" do regime e iremos perceber que, talvez, também estas tenham sido vítimas das circunstâncias...

O « Testemunho 369 A » é o de Agnes Jemina, que nasceu pouco antes da formação de Gileade e foi capturada ainda bebé, juntamente com a sua mãe, quando tentavam fugir do país. A mãe, uma vez que podia ter filhos, foi condenada a viver como Serva, e Agnes foi entregue a um Comandante e à sua Esposa, Tabitha, que nunca lhe revelaram ser adotada. Tudo parece correr bem até que Tabitha morre e a nova madrasta, Paula, decide que está na altura de Agnes sair de casa e começa a organizar o seu casamento com alguém de estatuto elevado, vendendo a ideia como se fosse o negócio do século e uma excelente oportunidade para a jovem de apenas 13 anos. Aqui, vamos acabar por ter uma outra perspetiva da vida no regime: a das jovens que terão o "privilégio" de se tornar Esposas. Achei este o relato mais angustiante de todos, pois independentemente do que pensasse ou desejasse, a decisão final não lhe competiria a ela e não havia forma de recusar o casamento arranjado. O caminho dela acabará, no entanto, pode se cruzar com o da Tia Lydia, que lhe irá oferecer uma alternativa arriscada e pouco segura mas, ainda assim, uma alternativa a considerar.

Por fim, temos o « Testemunho 369 B », uma das personagens que mais me irritou pela sua imaturidade. Provavelmente a ideia era retratá-la como uma jovem intrépida e destemida, mas para mim assemelhou-se mais a uma jovem sem noção. Tal como aconteceu com Agnes, também Daisy foi contrabandeada através da fronteira entre Gileade e o Canadá quando era ainda bebé. A diferença é que, ao contrário de Agnes, Daisy pôde viver tranquilamente, desconhecendo o seu passado e a sua origem, até aos dezasseis anos, data em que um terrível acontecimento vai pôr a descoberto todos os segredos. 

Eu já tinha lido A História de Uma Serva em 2018 e, apesar de ter uma ideia das linhas gerais do livro, havia certos detalhes dos quais não me recordava. No entanto, as ligações mais importantes entre os dois livros estão tão bem explicadas que torna possível que Os Testamentos possam ser lidos isoladamente. 

É um livro de traições, jogos de bastidores e no qual percebemos que Gileade é um regime podre por dentro, apesar da propaganda de vitalidade e de elevados princípios morais. Mas, desde o início da leitura que é notório que alguma coisa está prestes a acontecer... algo que irá mudar por completo o regime e a vida de todos aqueles que dele fazem parte. Que tipo de mudança é essa, é algo que vai sendo revelado aos poucos, de forma indireta, até por fim culminar num momento de grande tensão, a partir do qual as páginas do livro vão voar nas vossas mãos.

Mas esperem! Há mais.

Não sei se partilham da mesma opinião mas, sabem quando há aqueles flashbacks que nos deixam chocados, e ao mesmo tempo, lançam luz sobre uma série de detalhes que estavam por esclarecer? Preparem-se para muito disso! Os Testamentos são um puzzle que se vai revelando aos poucos e que nos permite ir tendo uma visão cada vez mais abrangente do que se passa e, claro, nos vai fazer não querer pousar o livro até chegar ao final.

Deixo no entanto um aviso:tal como acontece com outros livros de Atwood, Os Testamentos não se enquadram no tipo de literatura "leve e bem disposta" que nos deixam descontraídos e com uma visão positiva do mundo. Pelo contrário. É no entanto uma excelente sugestão para quem, como eu, gosta de distopias.

E vocês, já leram os Testamentos?

Boas Leituras

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