Ele Está de Volta (2012) de Timur Vermes

by - abril 28, 2019

Look Who's Back
★★★★
Sinopse: 
Berlim, 2011. Adolf Hitler acorda num terreno baldio. Sente uma grande dor de cabeça. O seu uniforme tresanda a querosene. Olha à sua volta e não encontra Eva Braun. Nem uma cidade em ruínas, nem bombardeiros a riscar os céus. Em vez disso, descobre ruas limpas e organizadas, povoadas de turcos, milhares de turcos. E gente com aparelhos estranhos colados aos ouvidos.

Começa assim o surpreendente primeiro romance de Timur Vermes, passado na Alemanha de Angela Merkel, 66 anos depois do fim da guerra. Hitler ganha nova vida. Na sociedade espectáculo, dos reality shows e do YouTube, o renascido Führer é visto como uma estrela, um comediante, que uma televisão sequiosa de novidades acolhe de braços abertos.

A Alemanha da crise, o Euro ameaçado, da austeridade, vê nele um palhaço inofensivo. Mas ele é real, assustadoramente real. E, passo a passo, maquiavelicamente, planeia o seu regresso ao poder - por via da televisão [Fonte: VERMES, Timur. Ele Está de Volta. Lisboa: Lua de Papel, 2013]



Opinião:
A primeira vez que peguei neste livro, foi porque a capa me chamou a atenção. 
No entanto, como não achei a sinopse especialmente interessante, acabei por não o comprar.

Uns tempos depois, numa das minhas sessões de zapping, descobri que o livro tinha sido adaptado para filme. Gostei tanto deste último, que acabei por decidir dar uma hipótese ao livro, o que se revelou uma excelente decisão e a verdade é que o livro e o filme se completam, complementam e enriquecem mutuamente. Por isso, vejam um e leiam o outro - não necessariamente por esta ordem - que não se vão arrepender!


Look Who's Back

Li Ele Está de Volta pela primeira vez em 2017.
Voltei a lê-lo agora, em 2019.
Em cada uma das vezes, a vivência do livro foi totalmente diferente.

A história passa-se em Berlim.
Hitler acorda «num baldio, rodeado de paredes laterais de edifícios, feitas de tijolo, em parte conspurcadas», com uma forte dor de cabeça, e o uniforme com « um cheiro intenso a combustível, talvez gasolina ».

Confuso, dirige-se a um quiosque onde, ao olhar para a capa do jornal, descobre estar, nada mais, nada menos, do que no ano de ... 2011!


Look Who's Back
"Er ist wieder da" (2015)

Como se deu esta viagem no tempo, é algo que nunca é verdadeiramente explorado mas, para ser franca, não acho que o livro tenha perdido com isso. Em contrapartida, os contrastes - ou choque civilizacional, se preferirem - entre  o ano de 1945 e 2011 está muito bem esmiuçado e é, sem sombra de dúvida, o que confere uma grande comicidade a 
Ele Está de Volta. 


« Estávamos portanto ainda em guerra, já que, como protecção, o ciclista trazia na cabeça um capacete bastante danificado por ataques anteriores, na verdade completamente esburacado.»


Tudo é novidade para este Adolf Hitler recentemente chegado a Berlim.
Os telemóveis.
A Internet.
A Wikipédia.
A televisão a cores.
O plástico.
As barras de cereais.


Look Who's Back
"Er ist wieder da" (2015)

E é através destas novidades que, surgem as primeiras críticas à sociedade consumista e estupidificada do mundo actual, e com as quais tive alguma dificuldade em discordar ... No fundo, somos levados a ver o nosso mundo actual, ao qual já estamos habituados, através dos olhos de alguém que está a ver tudo aquilo de novo, e a verdade é que há coisas que não fazem realmente sentido. 

« Examinei as peças de roupa penduradas em fila atrás do balcão. Estavam embrulhadas num material transparente não muito diferente daquele de que era feito o meu saco. Parecia que, de um modo geral, tudo era embalado com este material. (...) Segundo as informações que eu possuía, a produção deste material estava decisivamente dependente do petróleo, pelo que seria seguramente onerosa. Mas a forma como os materiais sintéticos eram usados no comércio, bem como o nível de utilização dos veículos automóveis, permitia concluir que o petróleo já não era aparentemente um problema. »

"Er ist weider da" (2015)


Mas, misturadas com estas caricaturas da sociedade actual, surgem outras críticas mais fortes, mais extremistas ... e mais perigosas. E é aqui que as coisas começam a ficar realmente interessantes.


O Hitler em Ele Está de Volta é o Hitler.
Não é um actor nem tão pouco um comediante.
Não é o apresentador de nenhum programa televisivo.
Não é ninguém com problemas de identidade a fazer-se passar por Hitler.
É o verdadeiro, Adolf Hitler, nascido em 1889 e Führer da Alemanha entre 1934 e 1945.
E ele nunca o escondeu ...

« - É que eu não faço ideia como o senhor se chama.
- Hitler - resmunguei. - Adolf.
- Pois claro - riu a voz (...). - Mas o que eu quero é o seu nome verdadeiro!
- Hitler! Adolf! - repeti, agora já um pouco indignado.
- A sério?
- Sim, claro!
- Mas isso... isso... trata-se então de uma coincidência ...
- Coincidência porquê ?
- Então, se esse é o seu nome...
- Por amor de Deus, a senhora também tem um nome, não tem ? E está a ver-me aqui sentado, boquiaberto, a dizer "ai, que coincidência"? »

Ainda assim, as pessoas aceitam-no.
Aceitam as piadas sobre as minorias.
Aceitam que « com a questão dos judeus não se brinca ».
Aceitam as críticas ao actual governo.
Aceitam a sua visão e a promessa de um futuro melhor.
E porque não haviam de aceitar ? As pessoas estão insatisfeitas e ele promete uma melhoria.

E é aqui que o filme e o livro se começam a fundir e a completar...
O filme, realizado por David Wnendt, mistura cenas preparadas e que fazem parte do guião, com algumas cenas improvisadas, nas quais este Hitler moderno interage com algumas pessoas.

Uma dessas cenas passa-se no Portão de Brandenburgo e vemos a forma quase histérica como Hitler foi rapidamente engolido pela multidão. "Foi incrível. Subitamente tornei-me a atracção, tal como uma popstar", disse Oliver Masucci - o actor que faz de Hitler - numa entrevista ao The Guardian



Mas estamos a falar de ... Hitler, certo ?
Não é estranho as pessoas querem tirar uma selfie com ele ?

Porque é que havia de ser estranho ?!
É óbvio que as pessoas que estavam no Portão de Brandenburgo perceberam que não era o Hitler verdadeiro! DUH!

Claro que devem ter percebido! Afinal de contas, ele ia com uma equipa de filmagens atrás. Mas a determinado ponto do filme, há um homem que diz qualquer coisa como « Se eu pudesse, corria consigo daqui. É preocupante que alguém se possa vestir de Hitler, sentar-se no meio de uma praça a pintar, e as pessoas acharem graça a isso ». 

As pessoas acham graça.
E assim, aos poucos e poucos ele vai conquistando multidões.
Um tipo começa a falar da raça pura e toda a gente lhe acha graça... 
Quando dão conta têm esse mesmo tipo a governar o país.

Sejamos francos: a maior parte das pessoas não quer saber o que é preciso fazer desde que possam beneficiar de alguma coisa sem terem de sujar as mãos. Como é que acham que o Hitler chegou ao poder ? Não foi nenhum golpe de Estado. As pessoas votaram nele.Claro que podemos dizer que havia um clima de terror, etc etc. Mas também havia a Grande Depressão e todas as suas consequências e uma pessoa que apresentava um caminho. O resto é História.

E a História tende a repetir-se.


Donald Trump

Donald Trump, o homem que prometia « make america great again », disse exactamente como o pretendia fazer durante a sua campanha eleitoral. Entre as várias medidas que anunciou, estavam:

1. Construir uma muralha para evitar a entrada de imigrantes
2. Impedir a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos
3. Trazer de volta os trabalhos com recurso a manufactura
4. Diminuir de impostos
5. Criar taxas sobre produtos provenientes da China e México

Sabem quem vendeu as eleições em 2016? 
Donald Trump!


Jair Bolsonaro

Jair Bolsonaro.
Eleito em 2018 com mais de 57.7 milhões de votos.

O actual presidente defendeu a ditadura militar, disse ser favorável à tortura, afirmou que preferia ver um filho seu morrer do que aparecer « com um bigodudo por aí » e que os homens e as mulheres não deviam receber o mesmo « porque elas engravidam ».

No entanto, no seu plano de governo, defendeu:

1. Tolerância zero com a corrupção e privilégios
2. Reduzir o défice deixado pela gestão do PT
3. Melhorar os recursos na área da saúde
4. Modernizar a educação
5. Gerar crescimento e oportunidades de emprego

Também já sabemos quem é que ganhou as eleições, certo ?
Apesar de depois andar muita gente indignada a dizer que ele é homofóbico, sexista e afins, a verdade é que se optou por ignorar essa parte e prestar atenção às vantagens.

O mesmo se passou com Adolf Hitler...


Quando foi eleito, já o Mein Kampf tinha sido publicado.
Ele nunca escondeu de que forma pretendia reconduzir o país à glória, e algumas das medidas estão bem explícitas nos 25 pontos do Partido Nazi, entre as quais.

1. Expansão do território alemão
2. Apenas aqueles que têm sangue alemão podem ser considerados cidadãos.
3.Os não cidadãos devem viver na Alemanha como estrangeiros, e estar sujeitos a leis próprias.
4. Toda a imigração de não-alemães deve ser prevenida. Exigimos que os não-alemães que entraram na Alemanha desde 02 de Agosto de 1914 sejam forçados a abandonar imediatamente o país.

Claro que também existiam pontos positivos.
Criação de emprego.
Reforma agrária.
Bem estar na velhice.

E, claro, as pessoas decidiram fechar os olhos às ideias menos agradáveis porque, afinal de contas « arbeit macht frei » e cria riqueza, mesmo que estejamos a falar de trabalho escravo e câmaras de gás. « O que os olhos não vêem, o coração não sente », e se por acaso os olhos calharem a ver alguma coisa, faz-se de conta que não se viu.


Auschwitz

Para mim, Ele Está de Volta, é um livro que consegue, com recurso ao humor e à sátira, mostrar que as pessoas são os verdadeiros monstros. Que na verdade, apesar de sermos todos muito humanitários no facebook (sim, porque nas redes sociais são todos a encarnação vida do Mahatma Gandhi), rapidamente se descobre a careca a muitos bons pseudo-samaritanos quando lhes é dado a escolher entre eles e os outros. 

Vejam o caso da Crise dos Refugiados.
Lembram-se do cadáver daquele menino sírio-curdo que deu à costa na Turquia e que causou comoção internacional, tornando-se o símbolo da tragédia que assola os refugiados ? Para além dele, só no barco onde seguia, morreram mais 12, entre os quais a sua mãe e irmão. 

A imagem correu o mundo.
Milhões de partilhas.
Toda a gente acha que "alguém" tem de fazer "alguma coisa".
Que isto é "uma tragédia".

Tretas. Merdas.

Tempos depois, uma outra foto.
Mais um miúdo sírio ferido, com 5 anos, e que aparece sentado numa ambulância, coberto de sangue e pó, depois de ter sido resgatado dos escombros de um prédio bombardeado no bairro de Al-Qatergui.

Mais uma vez, uma onda de indignação.
Exige-se novamente que "alguém" faça "alguma coisa".
« - Alguém que não eu, porque isto entre filhos, trabalho e arrumar a casa, sobra-me pouco tempo. »
Mudam-se as molduras do facebook e colocam-se aqueles efeitos a dizer help the refugees ou coisa parecida e acha-se que já se fez a sua parte.

Estamos a falar de refugiados, certo ?
Crianças. Adultos. Homens. Mulheres. Novos. Velhos.

E agora vão ver onde quero chegar com isto...

A 18 de Abril de 2019, o Diário de Notícias publicou um artigo no qual diziam que Portugal precisa de acolher mais 1010 refugiados até Outubro, entre os quais estarão certamente crianças como as que apareceram nas fotografias.

Seria de supor que, com tanto padecimento à volta das criancinhas, que as pessoas ficassem satisfeitas por poderem ajudar e fazerem realmente parte  Mas a realidade que encontramos é bem diferente...
Isto que estão a ver são comentários reais, de pessoas reais, que acham que os refugiados são «escumalha» que vêm para cá «comer à nossa custa», a quem dão «casa e ainda dinheiro» e que depois «ainda dizem mal do nosso país». Há até quem tenha a ideia peregrina de referir um «cartão de refugiado, ou de cigano». Sabem o que é que isto me faz lembrar? As estrelas de seis pontas sobre fundo amarelo que os judeus eram obrigados a usar, com o objectivo de tornar os "inimigos internos" da Alemanha "visíveis para todo o mundo", segundo o chefe do Departamento Central de Segurança do Reich, Reinhard Heydrich.

O mais assustador é que a maioria dos comentários são deste género.

Por esta razão acho que, Ele Está de Volta funciona perfeitamente em vários aspectos. 

Se quiserem ler o livro como uma espécie de sátira, resulta. 
Se quiserem, lê-lo numa perspectiva mais abrangente, também resulta.

De uma forma ou de outra, é impossível não estabelecermos algumas analogias com a realidade actual e dizermos que, efectivamente, Ele Está de Volta.

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2 comments

  1. Meu Deus! Como adorei este post!
    Bem, em relação ao livro, também já o tinha visto à venda e tinha adorado a capa! Mas nunca o comprei porque pensei que fosse uma espécie de "comédia" e não estava com disposição para isso...mas afinal o livro é mesmo interessante!! (mais um para a lista).

    Agora em relação ao resto do post. Não podia estar mais de acordo. As pessoas emocionam-se facilmente com as fotos que aparecem dos refugiados, mas quando chega a altura de fazer alguma coisa preferem ficar sentadas no sofá (e também não são capazes de dar nada pelos outros...).
    Em relação aos Estados Unidos e ao Brasil, é chocante! E mais chocante é ouvir pessoas a dizer "Sim senhor, agora é que o Brasil vai para a frente!" - mas são pessoas que fugiram de lá e estão cá em Portugal...irónico, não é?

    Há tanta coisa errada no mundo...mas gosto de livros que nos fazem pensar sobre isto. Vou arranjar o livro.

    Boas leituras!

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    Respostas
    1. Olá novamente Raquel!

      A capa deste livro é realmente fantástica. Tão simples mas, ao mesmo tempo, consegue realmente captar a nossa atenção, não é ?

      De certa forma acaba por ser uma espécie de "comédia" mas, pelo menos para mim, serve mais o propósito de ridicularizar certas coisas e, basicamente, dizer: "riam enquanto podem, depois vemos quem ri por último".

      E é assustador.

      Sim, quando mais tempo passa, mais actual este livro me parece.

      Repara: o livro é de 2012. Anterior a Trump, anterior a Bolsonaro e por aí fora, e já aí o autor aborda o regresso de Hitler. A semana passada foram as eleições europeias e, para além da taxa de abstenção, tivemos vencedores de extrema direita em países como França e Itália. E tenho a certeza que isto é só o começo...

      Se entretanto leres o livro, gostava muito de saber o que achaste! :)

      Beijinhos e Boas Leituras!

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