O Exorcista (1971) de Peter Blatty

by - junho 16, 2020

Peter Blatty
★★★★★
Sinopse:
Publicado pela primeira vez em 1971, O Exorcista tornou-se não só um fenómeno literário como um dos livros mais assustadores e controversos alguma vez escritos. A história centra-se em Regan, a filha de doze anos de Chris MacNeil, uma ocupada atriz que reside em Washington D.C. A criança aparenta estar possuída por um demónio ancestral e cabe a dois padres a dura tarefa de o exorcizar, arriscando a sanidade e a própria vida. O Exorcista transcendeu as páginas escritas e saltou para o grande ecrã, onde se tornou uma referência incontornável do cinema. Mas se pensa que o filme é assustador, leia o livro. Até porque o filme nem chega a aflorar a ponta do icebergue! Propositadamente crua e profana, O Exorcista é uma obra com a capacidade de nos chocar, levando-nos a esquecer que « é apenas uma história ».

Fonte: Blatty, William Peter. O Exorcista. Lisboa, Edições Gailivro (2010)



Opinião:
Os géneros que leio variam bastante conforme a minha disposição, e em maio dei comigo dedicada a livros sobre possessões. Depois de ter lido Murder in Amityville (1979) e The Sentinel (1974), achei que era uma excelente oportunidade para reler O Exorcista (1971) e parece que, de cada vez que o leio, o acho ainda melhor.

O tema central da história é a possessão de Regan - com doze anos de idade - e a luta do Bem contra o Mal que acaba por se materializar na figura do Padre Merrin, que levará a cabo o exorcismo. Curiosamente, e apesar do livro se chamar precisamente O Exorcista, tanto o exorcismo como o exorcista só aparecem já perto do final, sendo essa uma das razões pelas quais eu gostava de o poder ter lido sem conhecer o desfecho e sem saber minimamente com o que contar.

O Exorcista
The Exorcist (1973)

O ponto de partida para tudo aquilo que irá acontecer é um tabuleiro Ouija que a mãe de Regan, Chris MacNeil, comprara « em princípio, como um possível meio de desvendar motivações ao seu subconsciente ». No entanto, o tabuleiro acabou esquecido na cave até que Regan decidiu começar a utilizá-lo, estabelecendo contacto com um tal de Captain Howdy. A princípio, Chris desvaloriza a situação, considerando tratar-se de uma invenção fantasiosa até que começa a notar « uma mudança trágica e repentina no comportamento e atitude » de Regan.

« Tinha insónias, estava irascível, com acessos de mau humor. Dava pontapés nas coisas, atirava com elas. Gritava. Não queria comer e, além disso, a sua energia parecia anormal. Movia-se constantemente, tocando em tudo, com ira, volteante; corria e dava saltos, de um lado para o outro. Não sabia as lições. Arranjara um companheiro imaginário de brincadeiras. »

Preocupada, decide procurar ajuda para a filha mas, apesar de todos os exames médicos realizados, não há absolutamente nada que aponte algum tipo de doença ou anomalia física. Os médicos consideram que a explicação mais simples é normalmente a explicação correta e concluem que todos os sintomas são apenas táticas « para chamar a atenção », causadas pelo facto de Regan se culpabilizar pelo divórcio dos pais.

No entanto, desde início que Chris se opõe a esta explicação por considerar que não há razão absolutamente nenhuma para que a filha se culpabilize e, ainda que tal acontecesse, certamente que não ia mudar o comportamento de um dia para o outro. Por outro lado, há a sensação de que aquela criança que está amarrada à cama não é Regan, embora fisicamente se assemelhe a ela...

O Exorcista
The Exorcist (1973)

Na prática, se eu não conhecesse a história de antemão, ia ficar na dúvida sobre se haveria realmente alguma possessão. A maioria dos sintomas que Regan apresenta podem ser fingidos, e algumas das explicações dadas pelos médicos parecem minimamente exequíveis. Pelo menos mais exequíveis do que a ideia de uma possessão demoníaca. Claro que isto só se aplica até a tipa começar a levitar na cama e a vomitar com um alcance de seis metros, porque nessa altura já estamos completamente fora do campo das explicações razoáveis. Mas até lá chegarmos, a viagem é realmente incrível.

Para além de conseguir manter um excelente nível de suspense durante todo o livro, Peter Blatty criou um leque de personagens com as quais achei muito fácil simpatizar. Inicialmente tive algumas reservas relativamente a Chris MacNeil por a achar arrogante e desagradável com praticamente toda a gente mas, considerando que era uma estrela do cinema, provavelmente era assim que as estrelas eram representadas: cheias de maneirismos e nariz empinado.

O Exorcista

Como se não bastasse a história ser incrível e as personagens muito bem construídas, temos ainda a cereja no tipo do bolo: O Exorcista é baseado em eventos reais que tiveram lugar em 1949 e pelos quais Blatty viria a desenvolver especial interesse depois de se ver forçado a uma mudança de carreira, e ter de escolher entre ficar desempregado ou trocar a criação de conteúdos de comédia por outro tipo de conteúdo (sim, Peter Blatty escrevia comédia).

Depois de ter lido a história "real", rapidamente cheguei à conclusão que muito do que se passa no exorcista foi retirado daí: as marcas no corpo, a cama a abanar, o falar línguas mortas, os exames médicos que tentavam encontrar uma resposta para o que se estava a passar e até mesmo o aparecimento de um padre mais velho para fazer o exorcismo. Mas ao contrário do que esperava, o real pareceu-me mais cheio de fantuchadas e tretas do que a história ficcionada. Se quiserem tirar as vossas próprias conclusões, podem ler o diário escrito pelo padre Raymond Bishop que acompanhou o exorcismo realizado pelo Padre William S.Bowdern. Conclusão: a ficção criada por Blatty superou, em larga escala, a realidade.


Há também quem defenda que a história central d'O Exorcista não é a possessão mas sim a desintegração da família como consequência do divórcio e, pensando naquilo que li, tendo a concordar. Se olharmos para o livro à luz da época em que foi escrito, vemos que coincide com o período da liberalização das leis do divórcio na América. 

Antes da liberalização era necessário que o conjuge que pretendia o divórcio apresentasse um motivo válido para o pedido, como adultério, abandono do lar, incapacidade de um dos conjuges ter relações sexuais ou a prática de violência. Em 1969, o então governador do Estado da Califórnia, Ronald Reagan, assinou a primeira lei de no-fault divorce que permitia a que os casais se pudessem divorciar sem terem de alegar qualquer motivo. Na década seguinte, a maior parte dos Estados seguiu o exemplo, o que levou a uma verdadeira revolução que se espalhou por pelos Estados Unidos e levou a um aumento significativo do número de divórcios: enquanto que menos de 20% dos casais que se casaram em 1950 se divorciaram, a percentagem sobre para 50% quando falamos de casais casados em 1970. Quanto às crianças, cerca de metade das nascidas em 1970 acabou por assistir à separação dos progenitores, isto em comparação com apenas 11% das nascidas na década de 50 [Fonte: The Evolution of Divorce].

Parece que Peter Blatty não era propriamente apologista desta liberalização do divórcio - apesar de se ter divorciado várias vezes - e que, de certa forma, acabou por utilizar este livro para juntar a adaptação de uma história real, a uma crítica à lei no-fault divorce. Num artigo intitulado William Peter Blatty's Counter-Countercultural Parabole podem encontrar vários exemplos que ilustram de forma muito clara este antagonismo.

The Exorcist (1973)

Por fim, resta dizer que se são fãs de terror e histórias que envolvam o sobrenatural, O Exorcista é um daqueles livros que têm de ler. A versão em português tem estado esgotada mas hoje em dia, com a facilidade que há em encontrar livros em segunda-mão na internet, basta ter alguma paciência e persistência e esperar que apareça à venda. 

Se já viram o filme e gostaram, sugiro mesmo que espreitem o livro. Há muitas coisas que são deixadas de fora no filme ou pouco exploradas, como acontece com personagens como o Tenente William Kinderman e o Padre Karras. Aliás, lembram-se de eu referir que, se não tivesse lido o livro, ia demorar bastante tempo até reconhecer tratar-se de uma possessão? No filme as coisas acontecem muito rapidamente e, quando damos conta, já estão os padres a gritar a ladainha que agora é usada em praticamente todos os filmes que envolvem exorcismo.


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