O Armazém (2019) de Rob Hart

by - agosto 30, 2020

Wook.pt - O Armazém
★★★★☆
Sinopse:
Paxton nunca pensou que trabalharia como segurança para a Cloud, o gigante da tecnologia que domina a economia americana depois do desaparecimento do comércio tradicional na sequência de uma série de assassínios em massa. Muito menos que se mudaria para as instalações em expansão onde é possível viver e trabalhar. Mas quando se compara com tudo o resto que existe, a Cloud não é assim tão má. E quando conhece Zinnia, as coisas melhoram com a esperança de um futuro partilhado. Mas Zinnia não é o que parece. E Paxton, com acesso a credenciais de segurança, é o peão perfeito para ela descobrir os segredos mais negros da empresa. À medida que a verdade sobre a Cloud se vai revelando, ambos terão de perceber até onde a empresa está disposta a ir para tornar o mundo num lugar melhor.

O Armazém é um thriller brilhante sobre um futuro próximo e o que acontece quando o Big Brother se junta ao Big Business... e quem pagará o preço final.

Fonte: Hart, Rob. O Armazém. Porto Salvo: Saída de Emergência (2019).



Opinião: Quando se gosta de distopias, às vezes é-se enganado. Nem vos digo quantas vezes é que já comprei livros cuja capa publicita serem distopias aterradoras ou uma distopia ao género de [inserir nome de distopia popular, como 1984 ou A História de Uma Serva], e que depois se revelam uma completa pasmaceira, seguida de uma enorme desilusão. Mas, enquanto continuarem a publicar distopias, eu vou continuar a comprá-las porque... bom, porque tenho um problema. Já sei que vou sofrer umas quantas desilusões mas, de vez em quando, também vou encontrar estes verdadeiros tesouros como O Armazém! Que livro do caraças! Mas, se são daqueles leitores que gostam quando todos viveram felizes para sempre, então talvez devam procurar outra coisa porque, se há incompatibilidades na literatura, então distopias e finais felizes será certamente uma delas. 

Mas o que é que torna O Armazém num livro tão bom? 
O seu realismo.

De certeza que já ouviram as grandes discussões em torno da extinção do pequeno comércio que, pela sua dimensão, não consegue competir com as grandes superfícies. Outras vezes, são as grandes empresas quem utiliza táticas agressivas para levar o pequeno comércio à falência, tornando-se assim eles próprios os únicos fornecedores de determinados produtos ou serviços. A própria Amazon tem estado envolvida em alguma polémica, precisamente por se considerar que promove práticas de comércio injustas: um pequeno comerciante que não tenha condições para ter os seus produtos à venda através dessa plataforma, acaba por ficar em desvantagem o que, a longo prazo, se pode traduzir no seu encerramento. Mas, por outro lado, também há quem acuse os pequenos comerciantes de não se modernizarem, e elogie a Amazon por criar postos de emprego e por aí fora. Para este efeito, é irrelevante quem está certo ou errado mas, reparem: a verdade é que a compra através destas plataformas é uma realidade e com tendência para continuar a crescer, havendo até muitas lojas que funcionam exclusivamente online. E é disso que O Armazém fala.

  

Gibson vale, nada mais, nada menos, do 304.9 mil milhões de dólares, é « o homem mais rico da América e o quarto mais rico na terra verdejante de Deus » e CEO da Cloud, uma empresa gigante que diz ser « a solução para cada necessidade » e cujo objetivo consiste em « ajudar pessoas e famílias que não conseguem ir a uma loja, ou não têm nenhuma por perto, ou não querem correr o risco ».  Resta-lhe apenas um ano de vida, após lhe ter sido diagnosticado um cancro no pâncreas. 

Paxton é um antigo guarda prisional. Antes disso, era Presidente Executivo na própria empresa, através da qual desenvolveu e comercializou uma engenhoca de cozinha por si inventada: o perfect egg. O principal cliente era a Cloud que começou a insistir numa diminuição do preço do produto para o poderem comercializar a um valor reduzido e, provavelmente, aumentar a sua margem de lucro. Inicialmente Paxton otimizou a embalagem e reduziu o desperdício mas, « a Cloud não parava de pedir descontos », tendo chegado a um ponto em que « os descontos se tornaram tão grandes que deixei de ter lucro ». Quando se recusou a baixar mais o preço, a Cloud simplesmente deixou de comprar, ditando assim o fim do negócio de Paxton.

Zinnia, cujo nome verdadeiro nunca chegamos a saber, dedica-se à espionagem industrial e a sua missão é descobrir qual a fonte de energia da Cloud. O seu disfarce é bastante credível: diz ser uma ex-professora de matemática que ficou sem emprego depois das aulas presenciais terem sido substituídas por aulas em videoconferência.

Estas são as três personagens centrais da história e, em cada capítulo, temos a ação narrada no seu ponto de vista. Enquanto leitores, somos omniscientes e sabemos tudo o que se está a passar, em todo o lado: os planos de Zinnia, os pensamentos de Paxton, os objetivos de Gibson... Mas cada um deles, apenas sabe aquilo que sabe. Pessoalmente achei que isto resultou extraordinariamente bem, e sem dúvida que foi uma mais valia para manter uma boa dose de tensão. Sobretudo quando começam a surgir algumas desconfianças acerca de Zinnia, ou quando são tomadas decisões que podem colocar Paxton em perigo, e a única coisa que podemos fazer é assistir, sabendo até que ponto as coisas podem correr mal...


Como já viram, aquilo que liga Gibson, Paxton e Zinnia é a Cloud. Gibson é o CEO deste gigante de vendas e distribuição através de drones, Paxton e Zinnia são funcionários numa das muitas MotherCloud espalhadas pelo mundo. Aliás, quando o livro começa, é aí que os vamos encontrar: a preencher o questionário de admissão à MotherCloud, através do qual será automaticamente definido qual a cor do polo que lhes será atribuída: azul para a « segurança », encarnado para os « apanhadores », amarelo para os « embaladores », verde-lima para os « assistentes », castanho para a « equipa técnica », e brilhantes polos brancos para os « administradores ».

A MotherCloud é um local onde se vive e trabalha e que, segundo o autor, foi inspirado no modelo adotado pela empresa Foxconn Technology Group, uma empresa sediada na Tailândia, e a maior fabricante de componentes electrónicos e de computadores do mundo, onde se viram forçados a instalar redes de segurança como forma de evitar o suicídio dos funcionários. E sabem o que vem daqui ? Entre outros, os componentes para os iPhones (não deixa de ser irónico depois termos pessoal com iPhone a criar publicações onde defendem elevados ideais de igualdade e justiça social).

Here's What Workers of the Global South Endure to Create Corporate Wealth

Quem é aceite para trabalhar na MotherCloud, não é apenas um funcionário mas sim, como Gibson não se cansa de dizer, « família », o que é uma forma simpática de dizer que deixa de haver a separação entre a vida pessoal e a vida profissional. Antes da Cloud, « a semana média de trabalho era de quarenta horas, tinha-se o sábado, era-se pago pelas horas extra, e os cuidados de saúde estavam incluídos no salário ». Na Cloud, é-se pago num sistema bizarro de créditos que apenas podem ser gastos em lojas e itens da Cloud, é altamente recomendado que se voluntarie para fazer horas extraordinárias não pagas, « os impostos, bem como os valores modestos cobrados pelo alojamento, cuidados de saúde e transportes » são deduzidos no ordenado e, feitas as contas, quem lá trabalha acaba por não receber sequer o equivalente ao ordenado mínimo. Mas a escassez de ofertas de emprego, devido à pressão exercida pela Cloud que levou a que muitas empresas entrassem em falência, faz com que não existam muitas alternativas, e as pessoas acabam transformadas num « artigo descartável a embalar artigos descartáveis »

Para além disso, a todos aqueles que são admitidos na Cloud é atribuída uma CloudBand, uma pulseira que serve para tudo, desde abrir portas a fazer pagamentos e, claro, saberem sempre onde é que os funcionários estão. Sempre.

Já perceberam porque é que disse que esta distopia era assustadoramente realista? 

☑ Complexos de alojamento onde os funcionário vivem em condições sub humanas

☑ Empresas de venda online que levam à falência do pequeno comércio

☑ Subversão das regras laborais

☑ Mecanismos de controlo e monitorização das pessoas

Hoje em dia já temos tudo isto e consideramos que são coisas que nos facilitam a vida. Ignoramos o custo humano do consumismo desenfreado. A nível laboral, há quem se veja forçado a aceitar ilegalidades óbvias, por medo de ficar sem trabalho (durante os tempos de faculdade, tinha duas colegas que trabalhavam num supermercado muito conhecido e que não podiam utilizar as faltas previstas no código de trabalho para a realização de provas de avaliação porque, quem o fizesse, era mandado embora). Mas ainda assim, ninguém tem medo dos negócios nem das grandes empresas. Como o autor diz, toda a gente tem medo dos Governos mas ninguém receia os negócios, quando os negócios é que mandam e os políticos submetem-se à sua vontade.

« Eles são a escolha que nós fazemos. Fomos nós que lhes entregámos o controlo. Quando decidiram comprar as mercearias, nós deixámos. Quando decidiram tomar conta das operações agrícolas, nós deixámos. Quando decidiram tomar o controlo dos meios de comunicação e dos fornecedores de Internet, nós deixámos. Foi-nos dito que isso ia querer dizer  melhores preços, porque a Cloud só se preocupava com o cliente. Que o cliente era família. Mas não somos família. Somos a comida que as grandes empresas devoram para crescerem mais.»

Mas já me estou a afastar do livro, não é verdade? Desculpem-me mas são os efeitos secundários de ler uma boa distopia. Onde é que eu ia? Ah, pois, as personagens! Então Paxton e Zinnia vão trabalhar para a MotherCloud e, quanto mais eu lia sobre como as coisas realmente funcionavam, mais as coisas deixavam de fazer sentido. Por um lado, temos os grandes textos de Gibson a vender a ideia da Cloud como uma família unida, onde tudo é pensado para proporcionar bem estar ao trabalhador e onde este ocupa o lugar central pois, sem ele, nada seria possível. Depois, por outro lado, temos o cenário com que Paxton e Zinnia se deparam: quartos que mais parecem corredores, casas de banho partilhadas, assédio sexual, abuso de força e de poder, um sistema de avaliação pouco criterioso, desrespeito pelas leis laborais... E o pior nisto tudo, é que apesar das condições, a maior parte das pessoas parece estar genuinamente feliz e agradecida por lhe ter sido dada a oportunidade de ali estar.

Depois, o facto de Zinnia e Paxton estarem em extremos opostos - ela como agente contratada para uma missão de espionagem industrial, ele como agente de segurança da Cloud - acaba por nos permitir ter acesso a duas abordagens diferentes da mesma realidade, embora em vários momentos acabem por convergir, sobretudo quando começam a colocar as mesmas questões...

Mas, independentemente daquilo que os motiva, ambos chegaram lá, não por amor à Cloud mas, precisamente o contrário. Ainda assim, são vários os momentos em que as motivações se parecem perder, e ambos parecem prestes a conformar-se com aquilo que a MotherCloud lhes proporciona. Afinal, não é assim tão mau, pois não? Tem-se um teto sob o qual dormir, um trabalho e alguns créditos para gastar em produtos descartáveis. Que mais há na vida para além disto? Para quê pensar em fazer alguma coisa diferença se a Cloud proporciona tudo aquilo que é necessário? Não é o ideal e há realmente aspetos que podiam ser melhorados mas, é o preço a pagar por tudo aquilo que recebem em troca. Além disso, quando não há alternativas, isto é melhor do que nada...

The Warehouse book

E tudo isto é tão realista que se torna assustador. A escrita é bastante fluída, as personagens estão muito bem construídas e adorei a forma como as personagens se transformam ao longo da história. Para além do cenário em si, as personagens foram o que mais gostei no livro! Especialmente uma delas, de quem gostei quase de imediato, admirei por tudo aquilo que fez, acreditei que era um incompreendido e que realmente as suas intenções eram boas, para depois acabar com vontade de lhe bater com um pau de pontas aguçadas.

Outro ponto muito positivo foram as referências literárias ao Fahrenheit 451 e à História de uma Serva. Achei interessante darem a entender que era a Cloud quem estava a bloquear o comércio destes livros, para depois se chegar à conclusão que afinal eram as pessoas quem tinha deixado de procurar por se terem conformado com aquele tipo de vida. Fazem também referência a um outro do qual eu nunca tinha ouvido falar, da Ursula Le Guin, chamado The Ones Who Walk Away from Omelas mas que parece ser realmente qualquer coisa de extraordinário. 

O final, é outro aspeto que poderá não ser do agrado de muita gente: um daqueles que tanto pode significar uma coisa, como o seu completo oposto. Não sei quanto a vocês, mas eu adoro finais em aberto porque fico a pensar naquilo dias e dias a fio. 

Em suma, se gostam de distopias tecnológicas e não se importam com finais abertos, ponham já O Armazém na vossa lista e não se vão arrepender! 

Boas Leituras!

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