A Penúltima Verdade (1964) de Philip K.Dick

by - março 08, 2019

The Penultimate TruthThe Penultimate Truth
★★★☆☆

Sinopse: 
Terceira Guerra Mundial. Quinze anos a viver como formigas. Em 2010 a penúltima verdade. A maior burla duma história possível. Os homens abandonam a superfície devastada e escondem-se em abrigos subterrâneos. Nenhum, nunca mais, desde aquele dia viu alguma vez a luz de sol. Nenhum sabe que a guerra acabou. Nenhum sabe a verdade da superfície. [Fonte: DICK, Philip K. A Penúltima Verdade. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1985].



Opinião: 
Quando comecei a ler Philip K.Dick, fiquei com tanta curiosidade acerca do autor que decidi pesquisar um pouco mais acerca dele e, no meio dessas pesquisas, estava um documentário, The World According to Philip K.Dick, no qual faziam referência ao livro A Penúltima Verdade.

O conceito chamou-me logo a atenção: grande parte da humanidade vive em abrigos subterrâneos, acreditando que, à superfície, se trava uma guerra de proporções épicas, entre o Ocidente e o Leste. A cada um desses abrigos é pedido que cumpra uma determinada quota de produção de robots, pois são eles quem combate o poderoso inimigo à superfície e, caso a quota não seja cumprida, não restará outra solução que não seja tirar à sorte umas quantas pessoas para irem para a frente de combate. O grande embuste aqui - ou não fosse este um livro de Philip K.Dick - é que não há nenhuma guerra a ser travada.


A história lembrou-me logo O Silo, um dos meus livros favoritos de todos os tempos e portanto, tinha de o ler. No entanto, sendo um livro relativamente antigo (1964) achei que seria pouco provável conseguir encontrá-lo, pelo menos em Portugal. Descobri no entanto que A Penúltima Verdade faz parte da colecção de Ficção Científica da Europa América, uma colecção que já deixou de ser editada, e portanto, depois de me auto flagelar e fazer jejum durante uma semana como demonstração de fé à santa padroeira dos leitores, lá fui eu directamente à fonte, a Livraria Europa-América na Avenida Marquês de Tomar (Lisboa) para ver se o tinham. A funcionária disse-me que já só existia um exemplar mas que o ia pedir à outra loja e, passada uma semana ...

The Penultimate Truth

No entanto, ainda se passaram umas quantas semanas antes de o começar a ler porque, pelo menos para mim, é preciso estar com um determinado mindset para ler Philip K.Dick. As histórias são sempre tão fora da realidade que conhecemos que, se não estivermos para aí virados, nem vale a pena começar a ler.

Mindset PKD: engaged. 

A Penúltima Verdade foi publicada em 1964 e a sua narrativa situa-se em 2023, quinze anos depois do fim da Terceira Guerra Mundial, travada entre as Wes-Dem (Democracias Ocidentais) e os Pac-Peop (União Soviética).

A III Grande Guerra, que começou no início do século XXI, foi travada por um exército de robots construídos para suportar as condições mais extremas, entre as quais, o uso de armas de destruição maciça. Inicialmente, a população humana foi apanhada no meio do conflito e rapidamente se chegou à conclusão que seriam incapazes de viver naquela atmosfera. Assim, o governo cria complexas estruturas no subsolo para abrigar, proteger e garantir a sobrevivência da população, por esta altura já em forte declínio, oferecendo-lhes uma garantia: a de que tudo farão para pôr termo ao conflito que se trava à superfície e que, assim que este chegar ao fim, irão garantir que os refugiados possam regressar ao exterior. Como moeda de troca para a segurança que estes imensos abrigos subterrâneos proporcionam, os refugiados apenas têm de cumprir com a quota de produção de robots que são usados em combate e com os quais se espera derrotar a facção inimiga e alcançar a vitória.

« Produzimos o instrumento fundamental com o qual é conduzida a guerra; é porque os robots conseguem viver na superfície radioactiva, no meio daquela multiforme argamassa de bactérias e fumos destruidores.» (pg.19)  

The Penultimate TruthThe Penultimate Truth

Acontece que, ao fim de dois anos, a III Grande Guerra estava terminada mas, ao invés de trazer a população de volta à superfície, a elite de yance-men (por serem "os homens do presidente" Talbot Yancy) decidem perpetuar a mentira, de modo a manterem toda a riqueza para si mesmos e, assegurarem que os silos continuam a produzir os robots que são usadas para diversas funções, das quais o combate com o inimigo não faz parte.

Assim, se por um lado temos os yance-men, « especialistas em ideias, escrevem discursos e programam-nos no Megavac-6 » (pg.82) que vivem em imensas propriedades às quais chamam domínios, com um séquito de robots como servos pessoais; por outro lado temos os refugiados, há mais de 15 anos privados do sol, com alimentação racionada e levados a crer que a subida à superfície é sinónimo de morte, seja por efeito das radiações, seja por contraírem doenças como a Praga do Saco, Raw-Ckaw-Paw ou Stink if Shrink, todas elas inventadas pelos tais « especialistas em ideias » (pg.82) pois « de outro modo as pessoas, e bem sabemos que é o que sempre fazem, teriam corrido para a superfície » (pg.160)

« O que aconteceria se a terra se abrisse e milhões de seres humanos, aprisionados no subsolo desde há 15 anos, acreditando na existência de um inferno radioactivo à superfície com mísseis e bactérias e destroços e exércitos em luta saíssem cá para fora ? O sistema de domínios ruiria pela base (...) » (pg. 42)

Philip K. DickPhilip K. Dick

As coisas começam a ficar interessantes quando o presidente do abrigo comunitário Tom Mix, Nicholas St. James se vê forçado a subir à superfície, na tentativa de obter um pâncreas artificial para o mecânico-chefe, Maury Souza e encontra uma realidade muito diferente do território inóspito e inabitável que o fizeram crer existir.

E será também mais ou menos a partir deste ponto, que também nós começamos a perceber que a conspiração vai muito para além daquilo que suspeitávamos.

A narrativa está de tal forma bem conseguida que dei comigo a suspeitar deste e daquele e a questionar constantemente o que é que seria o correcto. Sabem que, normalmente, há aquela tendência para agrupar as personagens em good guys e bad guys mas, onde é que traçamos a linha que separa uns dos outros ? 

É o objectivo que conta ? 
É o caminho seguido para alcançar esse objectivo ? 
É o balanço entre perdas e ganhos ?

Neste aspecto, PkD conduz o leitor com mestria e sem dúvida que consegue manipular-nos ou, pelo menos, levar-nos a questionar a dicotomia do certo ou errado. Embora A Penúltima Verdade conte com várias personagens secundárias, e até mesmo terciárias e por aí fora, há duas trajectórias que se destacam: a do presidente do silo Tom Mix, Nicholas St.James, e a de um « yance-man da Califórnia do Norte chamado Joseph Adams » (pg. 126), a quem aquilo que faz provoca conflitos interiores « mas ... compactua. Vai com os outros. Pactua. Depois, e mesmo durante as suas dúvidas. Tem-nas ... mas pactua » (pg. 126).


A Penúltima VerdadeA Penúltima Verdade

Portanto, tão culpado é aquele que faz o mal, como o que com ele compactua, certo ? Ou será que podem haver circunstâncias atenuantes ? E até que ponto essas atenuantes podem justificar ou desculpar o facto de se compactuar com uma mentira que mantém milhões de pessoas aprisionadas no subsolo enquanto outros enriquecem à custa deles ?

Como vêem, este livro levanta bastantes questões morais e éticas, explorando algumas das temáticas que marcam a obra de PkD como a história alternativa, monopólios corporativos, governos autoritários, viagens no tempo, conspirações ... 

Bom, sabemos que o autor era paranóico mas, como escreveu Joseph Heller em Cath-22, « just because you're paranoid doesn't mean they aren't after you » e pensem no seguinte: todos nós confiamos no Governo, certo ? Podemos confiar mais, ou confiar menos mas, se nos mandassem para um abrigo subterrâneo e nos dissessem que havia uma guerra nuclear em curso, a maioria de nós acreditaria e faria exactamente aquilo que nos era pedido. 


[vou parar por aqui senão vou parecer um daqueles programas acerca das conspirações do Canal História ]

Adiante.

A Penúltima Verdade não vai entrar para a minha lista de livros favoritos de Philip K.Dick. Apesar de ter gostado bastante do conceito e o livro levantar questões realmente interessantes, por vezes a história tornava-se demasiado confusa e perdia noção de qual era o verdadeiro objectivo por detrás de um ou outro plano. Mas, como disse logo ao início, é preciso estar com um determinado estado de espírito para ler PkD e pôr de lado o querer perceber logo tudo desde o início. Em primeiro lugar, porque o autor usa termos inventados por ele (como Raw-Ckaw-Paw, Stink if Shrink, Wes-Dem, Pac-Peop) que não nos dizem nada da primeira vez que os lemos mas que depois, começamos a perceber o significado pelo contexto. Em segundo lugar, porque creio que o autor gosta de criar um certo grau de confusão e dúvida no leitor, para que nos sintamos da mesma forma que as personagens. Valeu a leitura pelas questões que surgiram depois.


« Uma vez que os homens são demasiadamente cegos para se governarem a si próprios, como é que podem ser deixados a governar outros ? » (pg.42)



No entanto, se estão a começar a ler PkD, não recomendaria A Penúltima Verdade como primeiro livro, e arriscaria sugerir O Homem Duplo por ter uma história mais linear e menos irrealista.


Outras reviews de Philip K.Dick disponíveis no blogue
      

Segue o blogue nas Redes Sociais!
um blogue sobre livrosum blogue sobre livros





wook é uma oferta?

Acho que poderás gostar de...

0 comments