A Mulher Comestível (1969) de Margaret Atwood
★★★☆☆
Sinopse:
Marian é uma mulher deliberadamente vulgar, que espera casar-se mais dia menos dia. Gosta do seu trabalho, da amiga quase ninfomaníaca com quem partilha o apartamento, do seu noivo excessivamente fleumático. Ao princípio tudo parece correr bem. Mas Marian não contou consigo mesma, com aquilo que é na realidade: uma mulher que deseja um pouco mais do que aquilo que tem, que inconscientemente vai sabotando os seus próprios planos, a sua rotina, a sua digestão. E Marian descobre, por fim, que há coisas que não suporta... A Mulher Comestível foi publicado em 1969, coincidentemente com a ascenção do feminismo na América do Norte. Muita gente pensou de imediato que o livro era, pois, um produto desse movimento. Ora o romance fora escrito, na verdade, quatro anos antes. Como diz a própria autora: « Eu encaro o livro mais como protofeminista do que como feminista. Não existia qualquer movimento feminista quando o escrevi, em 1965, e eu não tenho o dom da clarividência apesar de, a exemplo de muitas mulheres dessa época, ler Betty Friedan e Simone de Beauvoir à porta fechada. Vale a pena realçar que as opções da minha heroína se mantêm praticamente inalteradas ao longo de todo o livro: ou uma carreira que não conduz a parte alguma, ou um casamento para escapar à carreira. Mas estas eram as opções de qualquer jovem, ainda que instruída, no Canadá dos anos 60. E seria aliás um erro acreditar que as coisas mudaram verdadeiramente». [Fonte: ATWOOD, Margaret. A Mulher Comestível. Lisboa: Livros do Brasil, 2002]
Marian é uma mulher deliberadamente vulgar, que espera casar-se mais dia menos dia. Gosta do seu trabalho, da amiga quase ninfomaníaca com quem partilha o apartamento, do seu noivo excessivamente fleumático. Ao princípio tudo parece correr bem. Mas Marian não contou consigo mesma, com aquilo que é na realidade: uma mulher que deseja um pouco mais do que aquilo que tem, que inconscientemente vai sabotando os seus próprios planos, a sua rotina, a sua digestão. E Marian descobre, por fim, que há coisas que não suporta... A Mulher Comestível foi publicado em 1969, coincidentemente com a ascenção do feminismo na América do Norte. Muita gente pensou de imediato que o livro era, pois, um produto desse movimento. Ora o romance fora escrito, na verdade, quatro anos antes. Como diz a própria autora: « Eu encaro o livro mais como protofeminista do que como feminista. Não existia qualquer movimento feminista quando o escrevi, em 1965, e eu não tenho o dom da clarividência apesar de, a exemplo de muitas mulheres dessa época, ler Betty Friedan e Simone de Beauvoir à porta fechada. Vale a pena realçar que as opções da minha heroína se mantêm praticamente inalteradas ao longo de todo o livro: ou uma carreira que não conduz a parte alguma, ou um casamento para escapar à carreira. Mas estas eram as opções de qualquer jovem, ainda que instruída, no Canadá dos anos 60. E seria aliás um erro acreditar que as coisas mudaram verdadeiramente». [Fonte: ATWOOD, Margaret. A Mulher Comestível. Lisboa: Livros do Brasil, 2002]
Opinião:
De todos os livros que li da autoria de Margaret Atwood, este foi aquele de que menos gostei. O que mais me chateia é que, provavelmente, o problema nem sequer deve ser do livro em si, mas sim do facto da leitura anterior a esta (A Caminhada, de Drew Magary) ter sido tão absolutamente fantástica que, qualquer livro que eu lesse depois ia ser mau.
De todos os livros que li da autoria de Margaret Atwood, este foi aquele de que menos gostei. O que mais me chateia é que, provavelmente, o problema nem sequer deve ser do livro em si, mas sim do facto da leitura anterior a esta (A Caminhada, de Drew Magary) ter sido tão absolutamente fantástica que, qualquer livro que eu lesse depois ia ser mau.
Quando acabei de ler A Caminhada andei uma série de dias num impasse. Aliás, andei naquele impasse de que todos os leitores sofrem de vez em quando: as estantes cheias de livros e nada para ler. Não me apetecia nada demasiado sério, não me apetecia ficção científica, também não estava especialmente virada para policiais... e portanto, Margaret Atwood pareceu-me uma boa aposta. Infelizmente, acabei a arrastar-me penosamente ao longo de todo o livro, sem sentir qualquer ligação com o enredo nem com as personagens.
E acreditem que tentei.
A Mulher Comestível, narrada na primeira pessoa, tem como personagem central Marian, uma jovem que trabalha na empresa Seymor Surveys a « rever questionários e a transformar a prosa enrolada e excessivamente subtil dos psicólogos que os escreveram em perguntas simples e fáceis de compreender » (pg.24) e que partilha o «último andar de uma enorme casa de um dos bairros mais antigos e distintos da cidade » (pg.15) com Ainsley, uma jovem formada em Psicologia que tem um trabalho temporário a testar « escovas defeituosas numa empresa de escovas de dentes eléctricas » (pg.13).
Apenas pelas funções que desempenham na sua laboral, já ficamos com uma ideia do contraste entre as duas. A primeira, mais conservadora, com uma postura, dir-se-ia, mais adulta e que é a voz da razão na relação entre as duas. A segunda, mais liberal, e por vezes até imprudente, não receia pôr em causa algumas regras dos bons costumes socialmente impostos, se estas forem contrárias aos seus objectivos.
É desta forma que a história nos leva a reflectir acerca da forma como as mulheres podem decidir enquadrar-se na sociedade: de uma forma conformista, correspondendo àquilo que delas é esperado; ou de forma inconformista, pondo em causa valores que são considerados verdades absolutas.
Este contraste adensa-se quando Marian, apesar de ter uma relação na qual considerava que nem ela nem Peter estavam realmente envolvidos, aceita o pedido de casamento dele porque, é assim que é suposto as coisas serem.
« Como Peter costuma dizer, uma pessoa não pode andar indefinidamente aos caídos, as pessoas que não casam tornam-se esquisitas com o avançar da idade; tornam-se amargas, ou vazias, ou outra coisa idêntica » (pg.128)
Por sua vez, Ainsley, a bonne vivant que aprecia o ocasional flirt, decide que quer ser mãe. Claro que, não estando ela em nenhuma relação, nem fazendo intenção de estar, inicia uma busca por um potencial ... procriador (?). Notem que ela faz questão de deixar claro que, aquilo que procura não é um pai presente. O que precisa, é de alguém que a ajude na parte da concepção visto que, sozinha, não consegue conceber uma criança. E aqui é curioso vermos a forma como a autora conseguiu criar uma imagem de homem-objecto, numa altura em que as mulheres é que eram as objectificadas (não esquecer que o livro foi escrito em 1965).
Este contraste entre Marian e Ainsley é sem dúvida o aspecto mais marcante da história, na medida em que explora a dicotomia motivações/desejos pessoais versus expectativas da sociedade, algo que, mesmo 54 anos depois do livro ter sido escrito, continua a ser um tema bastante actual e com o qual muitos de nós provavelmente se identificam.
Dou-vos o meu exemplo.
Actualmente tenho 36 anos.
Tenho o mesmo namorado há 11 anos.
Moramos juntos e temos três gatos.
A partir de determinada altura, creio que quando passei a barreira dos 30, começou a marcação cerrada:
Então e vocês, quando é que têm filhos ?
Quando mais tarde, mais difícil é engravidar ...
Já estão a pensar em ter filhos ?
Já iam pensando nisso ...
Não se preocupem com o dinheiro porque tudo se cria.
Portanto, a sociedade determinou que um casal que esteja junto mais de determinado tempo tem de procriar e, preferencialmente, antes da mulher atingir os 30 anos de idade porque depois disso é muito complicado (vamos ignorar aqui todos os avanços no campo da medicina que têm vindo a permitir que as mulheres tenham uma gravidez saudável até idades mais tardias).
Têm outros planos, como viajar ?
São egoístas e deviam ter vergonha na cara!
Não gostam de crianças ?
São uns monstros, e monstros como vocês deviam ser espancados com um pau.
Estão os dois desempregados e não se conseguem sustentar ?
Que parvoíce! Tudo se cria ... Podem pôr a criança a pedir esmola à porta do metro.
Assim sendo, não me surpreende que, mais de meio século depois, tanta gente se continue a identificar com A Mulher Comestível e a defender que Margaret Atwood é uma espécie de profetisa.
E já que falamos de filhos, e da obrigação de os ter, isso remete-nos para um outro conjunto de personagens que foram, provavelmente, aqueles de que mais gostei porque, pelo menos na minha opinião, espelham com perfeição a consequência de aceitar as imposições sociais, renegando completamente os desejos e motivações pessoais.
Refiro-me a Clara, uma amiga de Marian, que se encontra num avançado estádio vegetativo da gravidez e que, quem a conhecer « chegará a duvidar que esta tivesse uma mente ou qualquer faculdade perceptiva para além do simples facto de se sentir uma esponja, uma vez que passará a maior parte do tempo a deixar-se absorver pelo seu enorme abdómen » (pg. 159); o marido desta, Joe, uma espécie de "escrava do lar" que parece morto por dentro, tal é o conformismo que emana dele; e o filho de ambos, uma criança que não tem limites e que tem uma predilecção por defecar nos armários ou esconder as fezes dentro de casa.
Em todo o discurso de Clara, é perfeitamente claro que não morre de amores pelo filho que tem, nem pelo que está para vir, e é óbvio que os vê como uma espécie de parasitas que lhe sugam a beleza, o tempo, os projectos e os sonhos, agora adiados por causa do seu novo papel de mãe. O marido, por sua vez, está completamente maniatado por todas as obrigações domésticas e familiares. Se me pareceram felizes ? Nada. Contudo, ambos parecem conformados com a infelicidade. Afinal de contas, fizeram o que era suposto fazerem... Tiveram filhos. Sim, no plural. Porque geralmente quando se tem um, há sempre a pressão de ter um segundo "para terem um casalinho".
Claro que o aspecto fulcral da acção, como já devem suspeitar, é o conflito interno de Marian entre o sujeitar-se a um casamento que nem sequer estava nos seus planos ou, simplesmente, não o fazer. E este conflito vai ser bastante acentuado com a entrada em cena de Duncan, um estudante de literatura inglesa que parece sofrer de uma série de distúrbios psicológicos ou ... será que o facto de não se enquadrar nas normas faz com que achemos que sofre de distúrbios ?
Mas, apesar de reconhecer que o livro explora alguns conceitos interessantes, mantenho a minha posição inicial: A Mulher Comestível não foi um dos meus livros favoritos de Margaret Atwood.
Demasiado conflito interno para o meu gosto.
Demasiado drama.
Demasiado "tenho de fazer isto porque é o que é esperado de mim".
Não tenho muita paciência mas, também já cheguei à conclusão que é uma temática recorrente nos livros de Atwood: o empowerment da mulher e coiso e tal. Percebo a ideia, entendo que muita gente se identifique com a temática mas, acho que já tive a minha parte e já não me sinto muito receptiva.
Mas ... (sim, porque há a minha opinião pessoal, e a minha opinião objectiva), a autora consegue explorar muito bem este conflito, pegando em aspectos chave como os filhos, a carreira, os sonhos e as motivações pessoais de cada um.
Como nota final, gostava apenas de referir que achei muito interessante o facto de a autora ter explorado um cenário em que o homem, neste caso Joe, tem a seu cargo todas aquelas tarefas que socialmente são atribuídas às mulheres, como a limpeza da casa, cozinhar, cuidar dos filhos.
Não digo "interessante" no sentido do: Assim é que é! Grande Atwood! As mulheres são superiores aos homens blá blá blá!
Mas interessante no sentido em que explora o facto de que as expectativas sociais não são só dirigidas às mulheres. Das mulheres, é esperado que sejam dóceis, que cuidem bem da casa, que saibam cozinhar, que saibam cuidar dos filhos e afins. Mas raramente se fala daquilo que é esperado dos homens, e da pressão a que também eles estão sujeitos.
Quem é que nunca ouviu frases como "um homem não chora" ?
Dos homens é esperado que sejam fortes, que ganhem mais do que as mulheres para sustentar a família, que percebam de mecânica, electrodomésticos, construção civil. Que não mostrem os sentimentos porque isso é sinónimo de fraqueza. Que estejam dispostos a entrar em conflitos físicos para proteger a sua prole e defender a honra da amada ... Se por acaso são mais sensíveis ou têm interesses diferentes do que está estipulado ser um interesse masculino e másculo, vem logo a suspeita "cá para mim aquele deve ser paneleiro" (sim paneleiro, porque quem faz este tipo de observações usa este tipo de termos).
E o curioso nisto tudo é que estes estereótipos já estão de tal forma entranhados que quando Joe surge a tratar de tudo, a sensação é a de que há ali alguma coisa que não faz sentido ... que é um absurdo ele estar tão sobrecarregado e a mulher não fazer nada. Mas depois lembramo-nos: espera lá ... muitas mulheres fazem isto diariamente e é considerado normal. E, na minha opinião, este detalhe faz toda a diferença, pois consegue que tomemos consciência do quão enraizados certas ideias pré-concebidas estão.
Assim sendo, não me surpreende que, mais de meio século depois, tanta gente se continue a identificar com A Mulher Comestível e a defender que Margaret Atwood é uma espécie de profetisa.
E já que falamos de filhos, e da obrigação de os ter, isso remete-nos para um outro conjunto de personagens que foram, provavelmente, aqueles de que mais gostei porque, pelo menos na minha opinião, espelham com perfeição a consequência de aceitar as imposições sociais, renegando completamente os desejos e motivações pessoais.
Refiro-me a Clara, uma amiga de Marian, que se encontra num avançado estádio vegetativo da gravidez e que, quem a conhecer « chegará a duvidar que esta tivesse uma mente ou qualquer faculdade perceptiva para além do simples facto de se sentir uma esponja, uma vez que passará a maior parte do tempo a deixar-se absorver pelo seu enorme abdómen » (pg. 159); o marido desta, Joe, uma espécie de "escrava do lar" que parece morto por dentro, tal é o conformismo que emana dele; e o filho de ambos, uma criança que não tem limites e que tem uma predilecção por defecar nos armários ou esconder as fezes dentro de casa.
Em todo o discurso de Clara, é perfeitamente claro que não morre de amores pelo filho que tem, nem pelo que está para vir, e é óbvio que os vê como uma espécie de parasitas que lhe sugam a beleza, o tempo, os projectos e os sonhos, agora adiados por causa do seu novo papel de mãe. O marido, por sua vez, está completamente maniatado por todas as obrigações domésticas e familiares. Se me pareceram felizes ? Nada. Contudo, ambos parecem conformados com a infelicidade. Afinal de contas, fizeram o que era suposto fazerem... Tiveram filhos. Sim, no plural. Porque geralmente quando se tem um, há sempre a pressão de ter um segundo "para terem um casalinho".
Claro que o aspecto fulcral da acção, como já devem suspeitar, é o conflito interno de Marian entre o sujeitar-se a um casamento que nem sequer estava nos seus planos ou, simplesmente, não o fazer. E este conflito vai ser bastante acentuado com a entrada em cena de Duncan, um estudante de literatura inglesa que parece sofrer de uma série de distúrbios psicológicos ou ... será que o facto de não se enquadrar nas normas faz com que achemos que sofre de distúrbios ?
Mas, apesar de reconhecer que o livro explora alguns conceitos interessantes, mantenho a minha posição inicial: A Mulher Comestível não foi um dos meus livros favoritos de Margaret Atwood.
Demasiado conflito interno para o meu gosto.
Demasiado drama.
Demasiado "tenho de fazer isto porque é o que é esperado de mim".
Não tenho muita paciência mas, também já cheguei à conclusão que é uma temática recorrente nos livros de Atwood: o empowerment da mulher e coiso e tal. Percebo a ideia, entendo que muita gente se identifique com a temática mas, acho que já tive a minha parte e já não me sinto muito receptiva.
Mas ... (sim, porque há a minha opinião pessoal, e a minha opinião objectiva), a autora consegue explorar muito bem este conflito, pegando em aspectos chave como os filhos, a carreira, os sonhos e as motivações pessoais de cada um.
Como nota final, gostava apenas de referir que achei muito interessante o facto de a autora ter explorado um cenário em que o homem, neste caso Joe, tem a seu cargo todas aquelas tarefas que socialmente são atribuídas às mulheres, como a limpeza da casa, cozinhar, cuidar dos filhos.
Não digo "interessante" no sentido do: Assim é que é! Grande Atwood! As mulheres são superiores aos homens blá blá blá!
Mas interessante no sentido em que explora o facto de que as expectativas sociais não são só dirigidas às mulheres. Das mulheres, é esperado que sejam dóceis, que cuidem bem da casa, que saibam cozinhar, que saibam cuidar dos filhos e afins. Mas raramente se fala daquilo que é esperado dos homens, e da pressão a que também eles estão sujeitos.
Quem é que nunca ouviu frases como "um homem não chora" ?
Dos homens é esperado que sejam fortes, que ganhem mais do que as mulheres para sustentar a família, que percebam de mecânica, electrodomésticos, construção civil. Que não mostrem os sentimentos porque isso é sinónimo de fraqueza. Que estejam dispostos a entrar em conflitos físicos para proteger a sua prole e defender a honra da amada ... Se por acaso são mais sensíveis ou têm interesses diferentes do que está estipulado ser um interesse masculino e másculo, vem logo a suspeita "cá para mim aquele deve ser paneleiro" (sim paneleiro, porque quem faz este tipo de observações usa este tipo de termos).
E o curioso nisto tudo é que estes estereótipos já estão de tal forma entranhados que quando Joe surge a tratar de tudo, a sensação é a de que há ali alguma coisa que não faz sentido ... que é um absurdo ele estar tão sobrecarregado e a mulher não fazer nada. Mas depois lembramo-nos: espera lá ... muitas mulheres fazem isto diariamente e é considerado normal. E, na minha opinião, este detalhe faz toda a diferença, pois consegue que tomemos consciência do quão enraizados certas ideias pré-concebidas estão.
E a vocês, que preconceito vos tira do sério ?
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