Anticorpos (1988) de David J.Skal - Colecção Argonauta n.º 381
★★★★★
Sinopse:
Anticorpos de David J.Skal, é um dos livros apresentados e seleccionados por Isaac Asimov que o considerou, mais do que modelar, uma autêntica novidade no campo da Ficção Científica. Terrível no que pode pressagiar, ANTICORPOS conta-nos a história, ou aventura, dependente dos progressos imponderáveis da tecnologia, daqueles que pretendem anular, finalmente, as barreiras que separam o homem da máquina. Tal como os transsexuais que se sentem enclausurados no corpo do sexo oposto, estes anticorpos tentam substituir completamente a sua estrutura corpórea, outrora talvez necessária, escapando, por fim, da sua complexa prisão de carne. O que no livro fabuloso se discute, será, em suma, o princípio da imortalidade ? Ou, pelo contrário, pressagia, como nenhum outro, um universo insuspeitadamente novo da medicina, da ciência e da técnica ? [Fonte: SKAL, J.David. Anticorpos. Lisboa: Livros do Brasil, 1989]
Opinião:
Já tinha achado Um Demónio no Cérebro um livro bastante gráfico mas este Anticorpos... wow... Fez-me lembrar quando o Ruggero Deodato foi a uma sessão de Q & A no MotelX acerca do Holocausto Canibal e eu só pensava como é que um tipo com um ar tão fofinho conseguiu sequer imaginar aquilo.
O mesmo se passa com Anticorpos e o seu autor, David J.Skal.
Costuma-se dizer que "quem vê caras não vê corações" e realmente, olhando para o nosso amigo Skal, jamais diria ... A sério ... como é que alguém com um ar tão à Avô Cantigas se consegue lembrar de ... Nem eu nos meus dias mais negros, nem nos meus pensamentos mais arrojados ...
Avô Cantigas - David J.Skal |
Escusado será dizer que ADOREI o livro e que foi dos melhores que me passou pelas mãos este ano. Não será de certeza um livro que agrade a toda a gente, tal como o Srpski Film não agrada mas, o que posso dizer ? Entre isto e uma história de am❤r ou um daqueles livros de auto-ajuda da treta, sei muito bem aquilo que escolheria ... e não estaria relacionado com amor nem auto-ajuda.
Neste Anticorpos, somos transportados para Manhattan, onde um culto underground chamado Templo Cibernético « oferece salvação pessoal. O Templo Cibernético combina Religião com Ciência. O Templo Cibernético oferece ao homem moderno uma hipótese de escapar às limitações do corpo físico. A tecnologia para isso existe » (pg.74).
Os seus seguidores, são chamados Anticorpos, pessoas que « não conseguem suportar o facto de habitarem um corpo » (pg.32), indivíduos « extremamente sugestionáveis que são presas tanto das duas próprias desilusões como das manipulações de terceiros » (pg.32). E, tal como os anticorpos do nosso organismo, também estes reagem contra os corpos estranhos, sendo que neste caso o corpo estranho é o que vem de origem. Ou seja, o que estes Anticorpos pretendem é, essencialmente, trocar partes do corpo - e se possível, fazer até uma transformação completa - por membros biónicos. Cortar um dedo para colocar um aparelho díodo, arrancar um olho para pôr uma lente de uma câmara, amputar os dois braços para colocar braços mecânicos com estimuladores eléctricos na ponta dos dedos. Basicamente « corpos novos a troco dos velhos » (pg.72).
Um desses Anticorpos, e também uma das personagens centrais do livro, é Diandra, a responsável pelo marketing visual da Croesus. De « face rígida, simétrica » e « estranhos olhos azuis baços », « as pessoas que não a conheciam associavam o seu aspecto com o mundo da música rock, das drogas. Mas essas coisas não tinham para ela qualquer serventia, a sua imagem era uma auto-criação. Estava seca, não oleosa e muito, muito pálida » (pg.12).
Logo no início do livro, percebemos que Diandra se prepara para ir para Boca Verde, o paraíso tropical onde se situa o Templo Cibernético e onde irá, finalmente, transformar-se num andróide. No entanto, um imprevisto que envolveu uma jovem vendedora da secção de utensílios, um enxerto em carne viva e infectada e um suicídio no poço do elevador da loja, acabou por alterar drasticamente os planos, e Diandra, em vez se rumar para Boca Verde, acaba fechada na Casa de Ressurreições de Marin County.
E a partir daqui caros leitores, se forem pessoas que se chocam com sangue, que se chocam com sexo e que se sentem ofendidos com facilidade, passem ao próximo livro. Se, pelo contrário, forem como eu ... então esta será provavelmente uma das melhores histórias que vão apanhar.
Após o internamento forçado de Diandra, a história vai desenvolver-se em dois tempos distintos. Num deles, vamos acompanhar o percurso de Diandra, praticamente desde que era adolescente até àquele momento. No outro, estaremos a acompanhar Julian Nagy, o director executivo e fundador da Casa de Ressurreições, onde ela está agora internada. Nalguns livros, estes saltos no tempo tornam a leitura confusa, mas em Anticorpos está, simplesmente, perfeito.
Como já repararam, vamos ter então, como é referido no Yunchtime, dois grupos que se opõem.
De um lado, as pessoas que se querem ver livre dos corpos de "carne" em troca de próteses sintéticas.
Do outro, aqueles que supostamente pretendem curá-los desta sua obsessão.
« (...) corpo espiritual, corpo carnal, corpo mortal, feto malcheiroso a desprender-se como merda, órgãos rebentados, pendentes aos bocados, enterrados vivos num caixão de sangue, oh, meu Deus!, eu não, que não seja eu, tenho de me livrar deste balde de tripas que me está a sugar para baixo (...) tenho de o deitar fora, a este corpo pulsante que se contorce,que jorra sangue e que gira como-um-carrossel (...) » (pg. 25)
Reparem que ali em cima enfatizei ali o supostamente pretendem curá-los... Isto porque não sei quem é mais varrido da cabeça, se os tipos do culto ou o Julian Nagy, especialista em alteração comportamental, que decide masturbar-se num directo televisivo num ângulo em que apenas a entrevistadora o conseguia ver e cujos métodos de « desprogramação e reabilitação de vítimas de pseudocultos religiosos » (pg.38) são, no mínimo, pouco ortodoxos.
Mas vamos lá organizar as ideias.
Na prática vamos ter três histórias a decorrer em paralelo e que, no final, acabam por se interligar (mais uma vez, de forma absolutamente brilhante!).
#1 - Diandra
#2 - Jules e Gillian
#3 - Venus Tramhell
Venus Tramhell é uma escultora que ficou conhecida pelos seus trabalhos arrojados, e por utilizar lasers como ferramenta. Acontece que um dia, ao trabalhar em mais uma das suas criações, terá sofrido um acidente - que, parece-me, talvez não tenha sido tão acidental quando isso - e que resultou em que tivesse ficado sem braços. Claro que a excêntrica escultora não baixou os braços (olh'á piadinha fácil) perante a adversidade e começou a desenvolver um especial interesse por implantes e próteses biónicos. O interesse dela, aliado ao facto de ter amigos ricos, levou a que acabasse por conseguir reunir uma colecção bastante diversificada de próteses, que iam desde braços com electroestimuladores, dedos com vibradores incorporados e até uma espécie de saca rolhas que se atarraxavam aos cotos dos braços. Basicamente, um solo technologic freak show.
[Fartei-me de procurar imagens de pessoas com saca-rolhas em vez de braços mas, parece que é uma ideia demasiado avant gard para o google]
Entretanto, Jules e Gillian mantêm um casamento de fachada. Ele, como director executivo e fundador da Casa de Ressurreições, « o local onde os brinquedos se tornam coisas vivas » (pg.106), usa e abusa dos seus métodos pouco ortodoxos para reverter a « profunda e insidiosa forma de lavagem ao cérebro » (pg.33) de que os seus pacientes teriam sido alvo. A lógica por detrás desses métodos, que vão do espancamento a cobrir o paciente com as próprias fezes, ou borrifá-los com urina de outros pacientes, é que é necessário demonstrar-lhes que são sacos de carne e não máquinas. Claro que rapidamente percebemos que Jules Nagy (cujo nome, curiosamente, soa assim a modos que fodilhão ordinário) não é nenhum benfeitor altruísta e que na realidade tira prazer sexual destas humilhações a que sujeita alguns dos seus pacientes. Seja como for, uma coisa é certa: a taxa de sucesso é elevada (apesar de alguns processos judiciais pelo meio, incluindo aquele em que os pais de um paciente o processaram quando chegaram à conclusão que terem tido relações sexuais em frente ao filho, em nada ajudou a que este recuperasse da lavagem ao cérebro a que fora sujeito pelo Templo Cibernético).
Gillian, a esposa-modelo, vive uma existência meio apagada. Sabe dos fetiches do marido, dos seus escapes sexuais e dos abusos. Ocasionalmente até chega a cruzar-se com mulheres que Jules leva para casa a fim de satisfazer os seus devaneios. Ela própria mantém uma relação extra-conjugal com um indivíduo paraplégico. Mas, apesar de tudo isto, o divórcio não está nos seus planos. Não se for ela a pedir visto que isso implicaria perder a casa na praia e a mansão vitoriana onde moram. Não ... o melhor é continuarem a viver vidas separadas em conjunto. Gillian tem, no entanto, um escape: a escrita. E é assim que acaba a escrever, sob pseudónimo, aquilo que pretendia que fosse uma sátira mas que acabou por se tornar na bíblia dos Anticorpos. O título é Helen Keller no Espaço.
Bom, o primeiro momento em que as histórias se cruzam é quando Diandra e Venus Tramhell se conhecem. Parece que, sem o saber, Diandra se tornou numa espécie de ícone da subcultura anticorpos, em grande parte devido às montras arrojadas que criava Croesus, com manequins femininos com televisões em vez de cabeças ou batedeiras no lugar de mãos.
É num dos encontros entre estas duas personagens que Venus dará a conhecer a Diandra as videocassetes (não esquecer que o livro é dos anos 80) do suposto Templo Cibernético, que falam sobre um lugar paradisíaco chamado Boca Verde onde, todas as pessoas seleccionadas, todos aqueles que estão acima da carne, poderão fazer os upgrades que bem entenderem e assim libertar-se do casulo carnal e alcançar a vida eterna. Será também através do contacto com um outro membro do templo cibernético, um tipo que já trocou um olho por uma câmara, que Diandra acabará por receber uma cópia de Helen Keller no Espaço, o que fará aumentar ainda mais o seu fascínio e o seu desejo de pertencer a essa elite minuciosamente seleccionada de indivíduos que poderão ir para Boca Verde.
E é aqui que as coisas começam a ficar interessantes...
* * * A L E R T A D E S P O I L E R * * *
Supostamente um paraíso tropical onde fica situado o Templo Cibernético, um laboratório com tecnologia de ponta onde a elite seleccionada pode fazer as tão desejadas operações e usufruir dos melhores cuidados de saúde, prestados por uma equipa de médicos especializados.
Supostamente...
A verdade é que o Templo Cibernético é tudo, menos um paraíso para aqueles que para lá vão. Os membros do culto são levados a crer que aquilo é uma espécie de instalação ultra moderna com equipamento sofisticado mas, a única coisa sofisticada que envolve Boca Verde e o Templo é o esquema para reunir seguidores.
Não há nenhum laboratório sofisticado.
Não há nenhuma equipa médica especializada.
Não há quaisquer substituições por próteses biónicas.
Todo o culto em torno do Templo Cibernético mais não é do que um esquema engendrado por Venus Tramhell para recrutar cobaias para experiências que têm como propósito conseguir incorporar a mente humana na máquina, testar operações às quais a própria Venus gostaria de se submeter, ou até obter materiais que seriam depois utilizados nela. Como refere a determinado ponto, os anticorpos são como chinchilas, e ela é a pessoa que usa casacos de chinchilas.
Esta descoberta sobre a verdade por trás de Boca Verde, o esquema fabricado que na realidade o Templo Cibernético é e o facto de ter Venus Tramhell por trás apanhou-me completamente desprevenida e adorei a sensação que isso provocou. Eu sabia que ela estava ligada ao culto, afinal de contas foi Venus quem mostrou as cassetes do Templo à Diandra, mas daí a ser ela quem está por trás de tudo... foi uma reviravolta que eu não estava mesmo à espera e adorei! A própria descrição do alegado "templo", que afinal mais não é do que uma espécie de matadouro, também estava genial e, depois de esperarmos o livro quase todo por aquele momento, quando finalmente lá chegamos e nos deparamos com aquilo ...
* * * F I M D E S P O I L E R * * *
Tal como disse logo ao início, este foi um dos melhores livros que li em 2018 e só lamento que David J.Skal não tenha escrito muito mais. Ainda assim, tenho perfeita noção que um livro com fetos mutilados e vivissecções possa ser considerado de mau gosto ... sobretudo nos dias de hoje, em que toda a gente se sente ofendida com tudo e mais alguma coisa.
No KirkusReviews parecem estar de acordo, ao referirem que nenhum dos detalhes - que envolvem mutilação, perversão, tortura e outras depravações - são deixadas à imaginação. E como eu também não quero deixar nada à imaginação, aqui vai uma amostra. Para contextualizar, digo-vos que a mãe entra na cozinha e dá com o filho a lamber as pás de plástico do triturador do lixo enquanto meneia as ancas de forma bastante sugestiva. Horrorizada, grita com ele e ... ele enfia a mão pelo triturador abaixo, enquanto a olha nos olhos, sem fazer sequer um esgar de dor no rosto.
« Puxo-o para longe da pia e é então que o sangue brota, no soalho, nas paredes. Chafurdámos nele... é quase como estar a dançar. Mete o coto entre os meus peitos, mexe-o para cima e para baixo, para que eu sinta os esguichos na cara. Grita que eu sou um estupor, um saco de tripas, que « nasci carne » e, por essa altura, já estamos a rolar no chão » (pg. 86)
Anticorpos será assim, para uns, doentio e deliberadamente provocante. A roçar o mau gosto e o exagero. Para outros, será uma espécie de previsão daquilo que está para vir, à medida que tentamos derrubar as barreiras entre o Homem e a Máquina.
Caso queiram explorar outros livros da Colecção Argonauta:
📖 Nave Mundo - Colecção Argonauta n.º 333 | Brian Aldiss
📖 Depois da Bomba - Colecção Argonauta n.º 309 | Philip K.Dick
📖 O Homem Duplo - Colecção Argonauta n.º 316 | Philip K.Dick
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